Os tempos áureos para a Europa no domínio dos semicondutores já existiram e aconteceram sobretudo na década de 90 do século passado, quando marcas como a Ericsson, a Nokia ou a Siemens davam cartas no mercado mundial das comunicações móveis. Nessa altura, a quota da região na produção de semicondutores chegou a ultrapassar os 40%, segundo dados do Boston Consulting Group. Hoje as contas são bem diferentes e a região não vai além dos 10%, num mercado que ao longo dos anos também evoluiu nos modelos de negócio e concentrou em poucos país, a maioria asiáticos, as grandes fábricas que abastecem as necessidades mundiais.
Dados da European Association of Automotive Suppliers indicam aliás que a indústria europeia depende em 60 a 70% dos chips produzidos em fábricas localizadas em Taiwan ou na China. A associação também indica que a capacidade europeia na componente de design de semicondutores para a indústria automóvel, aquela que hoje mais sofre com a escassez destes componentes, já foi relativamente sólida, mas nos últimos 10 anos terá recuado em cerca de 50%.
Acrescentando a estes dados os de outra fonte, a Associação Europeia da Indústria de Semicondutores, fica a saber-se que a indústria automóvel é responsável por 37% da procura de semicondutores na Europa e por 10% da procura mundial. A mesma associação publicou recentemente um gráfico onde mostra a capacidade instalada a nível mundial para produzir wafers, as finas placas que são o ponto de partida no processo de produção de semicondutores, e a sua evolução ao longo do tempo. Os números são claros.
A Comissão Europeia garante que está empenhada em trazer de volta para a região a capacidade perdida ao longo dos últimos anos, nas diferentes fases da produção dos semicondutores, para responder às necessidades da indústria automóvel e de todos os outros sectores que usam sistemas eletrónicos apoiados em chips.
No discurso do Estado da União, em setembro, Ursula Von der Leyen, sublinhou a importância de “investir na nossa soberania tecnológica europeia. Temos de apostar fortemente para moldar a transformação digital de acordo com as nossas regras e valores”. Nesta prioridade reconheceu a necessidade da Europa fazer mais e admitiu que “apesar da explosão da procura a nível mundial, a presença da Europa em toda a cadeia de valor diminuiu, do design à capacidade de produção”, constatando a dependência atual da Ásia.
A indústria automóvel é responsável por 37% da procura de semicondutores na Europa e por 10% da procura mundial
No segundo trimestre do próximo ano deve ser apresentada a proposta formal para um European Chips Act, também mencionado no discurso de setembro, e que será uma resposta à necessidade de “unir as nossas capacidades de pesquisa, design e teste” de modo a “coordenar os investimentos nacionais e da União Europeia ao longo da cadeia de valor”, explicou a responsável.
Com o European Chips Act, a CE quer lançar as bases de um ecossistema europeu de semicondutores, que cubra não só a produção, mas que também promova “a segurança do fornecimento” e ajude a desenvolver “novos mercados para tecnologias europeias inovadoras”.
O reforço da capacidade de produção de semicondutores na Europa também já era uma das prioridades espelhadas na Bússola Digital, uma espécie de carta de princípios das prioridades que vão nortear a estratégia e as políticas europeias até ao início da próxima década. Num dos quatro pontos cardeais desta bússola, apresentada em março, está a prioridade de criar infraestruturas digitais seguras, eficazes e sustentáveis, e uma das metas é fazer com que a produção europeia de semicondutores passe a representar 20% do total mundial.
A indústria aplaude a medida, mas vale a pena lembrar que as ambições da Europa nesta matéria são antigas. Em 2013 anunciava-se um investimento de 100 mil milhões de euros para duplicar a capacidade de produzir chips na UE e ultrapassar os EUA neste domínio, com quem a região assinou agora um novo acordo. A estratégia implicava a coordenação de investimentos e estratégias públicas e privadas nas áreas da micro e nanoeletrónica.
60% das patentes mundiais relacionadas com a condução autónoma vêm da Europa e 68 a 70% das inovações nesta área têm sido alcançadas por fabricantes europeus
"Devemos reforçar e interligar os pontos fortes que temos e criar outros. É necessária uma coordenação rápida e forte do investimento público a nível da UE, dos Estados-Membros e das regiões para que essa transformação ocorra", sublinhava na altura a então vice-presidente da Comissão Europeia, Neelie Kroes. A meta era a mesma: fazer com que a Europa duplicasse a quota de produção neste mercado para 20%. Quase 10 anos depois, as mudanças parecem ter sido pouco significativas, ou a meta seria agora diferente.
O papel do sector automóvel na estratégia digital da UE
Segundo números da CLEPA, que junta 120 fornecedores do sector automóvel e associações europeias da mesma área, o sector dá emprego direto na região a 1,7 milhões de pessoas. Representa 30% da despesa de investigação e desenvolvimento da UE, com os fabricantes locais a investirem anualmente 30 mil milhões de euros em I&D, que resultam em 9.000 patentes ao ano, detalha um documento partilhado pela associada AFIA - Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel.
Em dimensão, investimento e resultados de inovação está bem posicionado para cumprir o desígnio europeu de fazer dos veículos conectados e autónomos um cluster estratégico para a Europa. Números da mesma fonte mostram, por exemplo, que 60% das patentes mundiais relacionadas com a condução autónoma vêm da Europa e que 68 a 70% das inovações nesta área têm sido alcançadas por fabricantes europeus.
Os sistemas avançados de condução assistida aumentam para 35% o impacto da componente eletrónica no custo de um carro, com os semicondutores a terem um peso importante nesse bolo
Mas para operacionalizar esta ambição é preciso reduzir a dependência tecnológica da região, nomeadamente no que se refere aos semicondutores, que terão um papel cada vez mais importante nos veículos do futuro e influenciarão cada vez mais o seu custo.
"A tendência é incontornável. A procura automóvel de semicondutores continuará a crescer em grande escala devido à quota crescente de tecnologias de condução autónoma e assistida, para manter os condutores confortáveis e seguros, bem como pela eletrificação dos veículos, com a gestão sofisticada exigida do desempenho da bateria e outros componentes eletrónicos", detalha Adão Ferreira, secretário-geral da AFIA.
Pelo cálculos da CLEPA, os sistemas avançados de condução assistida aumentam para 35% o impacto da componente eletrónica no custo de um carro, com os semicondutores a terem um peso importante nesse bolo. À medida que as tecnologias aplicadas a estes veículos continuarem a desenvolver-se, o peso da eletrónica acabará por representar metade do preço do carro. Às mesmas conclusões chegou a IC Insights, como mostrou a Siemens numa apresentação.
Manter a situação atual, em que 80% das atividades de produção e integração da indústria de semicondutores está na Ásia, como sublinha também um estudo da Ecorys para a Comissão da Indústria, da Investigação e da Energia do Parlamento Europeu, compromete a oportunidade.
Produção mundial de chips vai aumentar 50% em 5 anos
Novos investimentos para reforçar a capacidade de produzir semicondutores são anunciados quase todos os dias e para quase todo o mundo, que acordou quase em simultâneo para o impacto desta concentração. Quando passou por Lisboa, para participar na Web Summit, o CEO da ARM, Simon Segar, disse que os investimentos já anunciados, para reforçar a capacidade mundial de produção de chips, em 50% nos próximos cinco anos, representam qualquer coisa como 2 mil milhões de dólares por semana.
A Europa já está na corrida, mas ainda longe de se destacar neste campeonato de intenções, seja por iniciativa própria ou na capacidade de atrair investimento e parcerias com atores de outras regiões, passos que muitos especialistas consideram fundamentais para acelerar processos e alcançar objetivos. "Desta escassez também surgem boas oportunidades, para oferecer mais, para investir e até para relocalizar alguns desses investimentos para a Europa", sublinha João Duque.
"Esta demasiada dependência de blocos não europeus pode levar a um dramático atraso no desenvolvimento da Europa, num espaço de dois a três anos, e face àquilo que serão os desenvolvimento de outros blocos", afirma João Duque, economista
Na opinião do economista e professor catedrático do ISEG, e sublinhando que o caminho é lento, esta é "uma boa oportunidade para, talvez com um pouco mais de ineficiência, garantir mais independência europeia. Esta demasiada dependência de blocos não europeus pode levar a um dramático atraso no desenvolvimento da Europa, num espaço de dois a três anos, e face àquilo que serão os desenvolvimento de outros blocos".
No terreno estão já os milhões dos planos de recuperação económica, que em parte ajudarão a responder a esta preocupação. Ainda em 2020, quase duas dezenas de países da região, Portugal incluído, assinaram uma declaração de compromisso para coordenar estratégias e esforços de investigação nas áreas relacionadas com os semicondutores, um compromisso que vai ajudar a tirar melhor partido do financiamento disponível e das ajudas de Estado que cada país conseguir levar ao terreno.
França e Alemanha, dois dos signatários deste acordo, têm também investimentos importantes em marcha para reforçar a capacidade de produção local, provavelmente já espelhados nos números projetados por uma das associações do sector.
A SEMI estima que em 2022 as despesas com equipamentos para fábricas de semicondutores rondem os 100 mil milhões de dólares. Este ano deverão ficar nos 90 mil milhões. A maior parte deste investimento será concretizado na Coreia do Sul (30 mil milhões de dólares), seguem-se Taiwan, China e Japão. A região Europa/Médio Oriente terá o quinto maior investimento global nesta área, cerca de 8 mil milhões de dólares, que traduzem um crescimento de 74%, face aos valores apurados para 2021.
Investimentos começam a chegar ao terreno
Entretanto, 2021 já fica marcado por algumas estreias importantes. A Infineon, que já operou a partir de Portugal (e que era principal acionista da Qimonda), abriu em setembro na Áustria uma nova fábrica, que numa primeira fase vai estar exclusivamente direcionada a responder às necessidades de fabricantes automóveis, data centers e produção de energias renováveis. A infraestrutura vai reforçar o potencial de vendas da empresa em dois mil milhões de euros ao ano e representa um investimento de 1,6 mil milhões de euros.
Aqui produzem-se semicondutores para eletrónica de potência, um dos nichos onde a Europa conseguiu manter uma posição relativamente confortável. Numa abordagem mais global, a posição dos principais fabricantes regionais no ranking mundial mantém-se longe dos lugares cimeiros, como mostra o quadro da Techmonitor, construído a partir dos dados de faturação das empresas, em 2020.
Nesta lista também é possível ver a posição no ranking global da STMicroelectronics e da NXP. A primeira é franco-italiana e tem sede na Suíça e a segunda holandesa. Desenvolvem tecnologias que respondem a necessidades distintas, mas combinadas as três empresas representam ainda assim 32% da quota de mercado global dos chips para a indústria automóvel, segundo dados da Strategy Analytics.
A região Europa/Médio Oriente terá a quinta maior despesa a nível global com equipamentos para fábricas de semicondutores em 2022: 8 mil milhões de dólares, que traduzem um crescimento de 74%, face aos valores apurados para 2021
Para reduzir a sua própria dependência de terceiros, também a Bosch está a concretizar um investimento de mil milhões de euros na fábrica de chips de Dresden, na Alemanha, apoiado pelo Governo alemão. A infraestrutura vai automatizar parte importante do processo de fabrico dos semicondutores e vai juntar-se a outra fábrica já em atividade localizada em Reutlingen, perto de Estugarda.
A empresa alemã vai produzir aqui semicondutores de potência, que serão depois usados em conversores DC-DC de veículos elétricos e híbridos e já anunciou que a capacidade das duas fábricas vai ser reforçada em 2022, com um novo investimento de 400 milhões de euros. O valor também será usado para criar um novo centro de testes de semicondutores na Malásia. Entretanto, a Bosch, um dos maiores fabricantes mundiais de componentes para o sector automóvel, lidera também um importante projeto de investigação europeu nesta área.
Outro anúncio importante neste domínio foi o da Intel, que diz estar pronta para investir 80 mil milhões de dólares na Europa ao longo da próxima década, para reforçar a capacidade de produzir semicondutores na região. Até final do ano deve anunciar a localização escolhida para duas novas fábricas, entretanto a fabricante norte-americana também já disse que vai reservar parte da capacidade de produção da fábrica da Irlanda, para responder às necessidades dos fabricantes automóveis.
Pelas contas da própria Comissão Europeia, a UE vai precisar de investir 125 mil milhões de euros em tecnologias digitais todos os anos até final da década, para diminuir a dependência de outras regiões e recuperar a liderança em áreas-chave. Para as redes de comunicações deverão ir todos os anos 42 mil milhões de euros, para as tecnologias cloud 11 mil milhões e para os semicondutores 17 mil milhões.
Este artigo integra o Especial CRISE DOS CHIPS: ONDE NOS AFETA, COMO SE RESOLVE E QUE PAPEL ASSUME A EUROPA?
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