Por Alisson Avila e Carlos Lopes (*)
A digitalização, este gigantesco conceito capaz de encapsular desde uma pequena mudança de hábito individual até à redefinição de um projeto para um país, é claramente uma das principais prioridades políticas da Comissão Europeia nesta década. A par da transição verde, que caminha lado a lado com a agenda da transição digital, o executivo europeu pretende colocar a União Europeia na liderança das grandes tendências de reconfiguração da economia mundial.
Não faltam tópicos sobre a mesa para que o mercado único efetivamente desempenhe este papel, dos quais se destacam a Lei dos Mercados Digitais, ou Digital Markets Act (DMA) e a Lei dos Serviços Digitais, ou Digital Services Act (DSA). Trata-se de movimentos regulatórios robustos e de larga escala, onde o principal ponto de atenção reside no impacto sistémico que ambas as propostas poderão ter no ambiente de negócios europeu.
A estratégia digital europeia, de 19 de fevereiro de 2020, tem-se traduzido em sucessivas propostas regulatórias que pretendem dar azo a uma nova morfologia de poder e viabilizar a soberania digital europeia, tipicamente envolta numa retórica geopolítica. Hoje, o conjunto dessas propostas configura um hexagrama legislativo, com propostas sobre a inteligência artificial, a governação de dados ou a cibersegurança, densificando, assim, o poder normativo da União a nível global.
Um dos eixos referenciais desse hexagrama refere-se ao modo de operação e de utilização das plataformas digitais na União. Nas últimas duas décadas, e desconto feito à aceleração espoletada pela pandemia COVID-19, os serviços digitais assumiram um estatuto estruturante sobre o quotidiano dos europeus que a grande maioria da população consegue perceber no dia a dia. Porém, embora os benefícios sejam evidentes, as dinâmicas do mercado digital global geraram fenómenos de concentração de poder e de influência política e social circunscritos a um número bastante reduzido de operadores, com riscos de caráter sistémico igualmente evidentes.
Face a isto, fez no passado dia 15 de Dezembro de 2021 um ano que a Comissão publicou a Lei dos Mercados Digitais (DMA) e a Lei dos Serviços Digitais (DSA). Em síntese, o DMA pretende responder aos problemas decorrentes do elevado grau de dependência dos utilizadores finais e profissionais dos serviços essenciais de plataforma prestados por controladores de acesso, os designados “gatekeepers”, através de listagem de obrigações e de práticas proibidas. O DSA, por seu lado, harmoniza as regras de remoção de conteúdos em toda a União e introduz regras de transparência e de responsabilidade proporcionais à dimensão e impacto dos operadores, sob o mote de “o que é ilegal offline é ilegal online”.
Com o termo do mandato da Comissão Europeia em 2024, restam apenas dois anos para promover a progressão do processo legislativo sobre estes temas, discutido e negociado pelo Parlamento Europeu e Conselho da UE, individualmente numa primeira fase e entre si posteriormente. Surpreendentemente, e num momento em que a parte final do processo legislativo está prestes a começar em janeiro de 2022, o Parlamento Europeu, por um lado, e o Conselho da UE, por outro, conseguiram definir as suas posições negociais num espaço de tempo muito curto.
Em Dezembro último, o Parlamento Europeu adotou a sua posição negocial sobre o DMA, tendo o mesmo acabado de acontecer relativamente ao DSA. No Conselho da UE, os governos europeus já tinham adotado a sua posição sobre ambos os dossiês, em novembro. França, que assume a Presidência da Conselho da UE durante o primeiro semestre de 2022, irá liderar a negociação em nome dos restantes Estados-membros, sendo que o seu objetivo é promover um acordo em ambos os dossiês até às presidenciais francesas, em abril.
Sem prejuízo da urgência na aprovação de ambas as propostas, à qual não será estranho o calendário político nacional francês, assim como o consenso nacional da cultura política francesa relativamente ao imperativo de limitar o poder de alguns operadores digitais, é crucial salvaguardar a posição de operadores como startups, scaleups e PMEs inovadoras. Embora o tópico seja estruturante e transversal, de sorte que pressupõe novas regras para todos os operadores e trade-offs de balanço entre a visão do legislador europeu, modelos de negócio e a prestação de serviços aos consumidores, são as startups e o ecossistema de inovação tecnológica os principais agentes das práticas que darão substância e concretizarão as transições digital e verde que as nossas sociedades procuram.
Por isso, deve ter-se presente os potenciais impactos negativos do DMA na trajetória de crescimento das startups e scaleups europeias, ao passo que o objetivo do DSA de desenhar um ecossistema digital mais transparente e responsável não pode colocar em causa princípios basilares de uma internet aberta, livre e plural – uma posição a ser publicada aqui na próxima semana. Trata-se de dois aspectos que em muito contribuíram para o desenvolvimento das sociedades e da economia europeia nas últimas décadas.
No estado atual de coisas, e apesar de terem sido publicadas em conjunto, um acordo mais rápido sobre o DMA é bastante provável, pois trata-se de uma legislação setorial, maioritariamente aplicável a operadores não europeus. Já a natureza horizontal do DSA, isto é, o facto de ser aplicável a todo o ecossistema digital, pode significar que um compromisso demorará mais tempo a ser alcançado, sendo que as divergências entre as posições dos colegisladores permanecem assinaláveis até o momento.
Mesmo que um acordo sobre ambas as propostas seja alcançado no decorrer da Presidência francesa, não é expectável que as mesmas entrem em vigor antes de 2023 - precisamente o momento em que testemunharemos de modo mais efetivo os efeitos da transição para uma nova fase na prestação e na utilização dos serviços digitais, rumo à Web 3.0 e 4.0.
A lógica transformadora das startups – seja pelo viés do aprender fazendo, seja pela criação de modelos de negócio de risco, entre tantos outros exemplos – é determinante na velocidade com que a inovação e respetivas vantagens competitivas são implementadas. Porém, essa velocidade nem sempre se coaduna com movimentos regulatórios ou políticos que geram impactos de médio e longo prazo em múltiplas dimensões. As novas regras são definitivamente essenciais; mas se o diabo está sempre nos detalhes, nunca como hoje pensar de modo sistémico e focado no futuro foi tão importante no desenho das perspetiva da economia digital europeia e no mercado único.
(*) Alisson Avila é Communication & Knowledge Principal da Beta-i e criador / Co-Founder da Portugal Tech League e Carlos Lopes é Policy Officer da Portugal Tech League
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