São quase 10 meses de licitações, contando com a fase de novos entrantes, 9 meses só na fase principal, em 191 dias, mais de 1.600 de rondas que já somam um encaixe potencial de 511 milhões de euros, mais do que duplicou o valor inicialmente definido para a reserva de espectro.

Os números não deixam dúvidas para o arrastamento do leilão que começou a 22 de dezembro de 2020, numa primeira fase, e a 14 de janeiro de 2021 na fase principal. Uma duração que dificilmente se antecipava que fosse tão longa, num processo que está envolto em polémica e litigância, com processos em tribunal, acusações cruzadas entre operadores e regulador, e avisos da parte do Governo para a necessidade de cumprir a estratégia definida.

Estes são os dados que o mercado tem vindo a acompanhar, com a informação das licitações divulgadas a cada dia, mas com muito pouca clareza adicional que permita uma melhor compreensão do que está a acontecer, e que decorre do próprio processo. E por isso as questões e dúvidas são muitas, sem que a larga maioria das pessoas percebam qual a razão da demora na atribuição das licenças.

A opção pela licitação de um conjunto muito alargado de espectro, dos 700 MHz aos 3,6 GHz, as exigências de cobertura, consideradas demasiado “pesadas”, o incentivo à entrada de novos operadores no mercado para introduzir maior concorrência, passando pelas próprias regras do leilão, são peças de um puzzle que contribuem para uma conjugação complexa de fatores, e que podem ser usados como explicação.

Mas não serão provavelmente as únicas, somando-se um arrastamento que será deliberado do procedimento por parte dos operadores, que escolheram optar por os incrementos mínimos de valor para os vários lotes, como a Anacom sublinhou no estudo feito para a mudança das regras.

A história é longa e pelo meio não faltaram avisos para os problemas que podiam decorrer do regulamento do leilão. Os operadores defenderam várias vezes para a possibilidade das regras fazerem com que o leilão fosse mais longo e apontaram o risco de desinvestimento e impactos negativos na economia, mas também avançaram com processos judiciais para tentar travar algumas das medidas.

Ao SAPO TEK a Altice Portugal adianta que “já deixou clara a sua posição em relação à duração e ao processo conturbado, sem precedentes, deste leilão. Trata-se de uma enorme oportunidade desperdiçada, num cenário desastroso para o País e  que poderia ter sido evitado”

“O Regulador não se preparou devidamente e analisou mal o dossier do leilão 5G. Ou seja, falhou na conceção do leilão, na elaboração das regras e não teve capacidade para aproveitar uma oportunidade única para Portugal”, afirma fonte da Altice
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A ideia tem sido partilhada também pelos responsáveis da Vodafone e da NOS, que não quiseram prestar novas declarações enquanto ainda decorre o leilão, mas as divergências e a litigância que envolvem o processo têm efeitos negativos, como Eduardo Fitas, vice-presidente, responsável pela área de Comunicações, Media e Tecnologia da Accenture Portugal, reconheceu ainda no ano passado, alertando para o “duplo impacto” no 5G, e para os custos de atrasos que dai poderiam decorrer.

Nove meses depois, o responsável da consultora explica ao SAPO TEK que não está surpreendido pelo arrastamento do processo. “Nunca o entendi essa afirmação dos operadores como uma ameaça, mas antes uma constatação natural dos factos”, adiantou.

E a visão sobre este impacto não se alterou.  “Mantenho a mesma visão de que os operadores estavam a descrever esse cenário de forma legitima. E considerando as razões invocadas, os 9 meses de espera só provaram que tinham razão nas suas suspeitas, agravando naturalmente os receios de necessidade de desinvestimento no mercado”.

“Quer o modelo seguido, quer as condições de mercado resultantes do leilão quer o tempo que este iria demorar para terminar, condicionam de forma relevante a capacidade e motivação de investimento dos operadores”, justifica Eduardo Fitas em declarações ao SAPO TEK.
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Embora reconhecendo que os operadores já estão preparados para o 5G há bastante tempo, Eduardo Fitas lembra que “naturalmente que, se os operadores saem de todo este processo mais fragilizados financeiramente, a sua capacidade ou motivação para co-investir em conjunto com o mercado no desenvolvimento de soluções poderá ser impactada. Noutros mercados, esta capacidade de investir em soluções que têm retorno a prazo é o que está a fazer a diferença na exploração das vantagens do 5G”.

Previsões para o fim do processo? Ninguém arrisca

Pedro Tavares e Sérgio Monte Lee, sócios da Deloitte, já tinham apontado ao SAPO TEK a complexidade do processo como um elemento de complexidade que não facilitava uma resolução rápida do licenciamento do 5G .

Os sócios da Deloitte recordam também que Paul Milgrom, Nobel da Economia em 2020, numa entrevista ao Expresso, referiu que as regras estabelecidas para o leilão do 5G em Portugal estavam alinhadas com práticas mais comuns usadas há 30 anos.

“Acreditamos certamente que as regras estabelecidas e a opção de leiloar várias faixas de espectro no mesmo processo veio complicar o desenrolar do mesmo. Por exemplo, ao permitir incrementos de 1%, ofertas em separado e com lotes muito idênticos, foram criadas condições favoráveis a tornar o leilão mais lento, não terá sido apenas um fator mas sim o conjunto de todas estas condicionantes que acabou por ter o impacto negativo que estamos a observar”, justificam.

“Mesmo com as alterações que a Anacom tem vindo a implementar, aumentando o número de rondas diárias ou inibindo a utilização de incrementos mais baixos, continuamos sem uma previsão para o fim do processo”, adiantam Pedro Tavares e Sérgio Monte Lee

Também Eduardo Fitas aponta a entrevista de Paul Milgrom como base de uma explicação, referindo que não é especialista em mecânicas de leilões mas que “consoante o objetivo pretendido fosse a maximização da receita ou fosse a rapidez da decisão, existiam diferenças de base que deveriam ser seguidas no desenho do mecanismo do leilão. Com tanto conhecimento sobre a matéria e tantas experiências práticas, o resultado que estamos a observar não deverá ser uma surpresa”.

Menos espectro e leilões mais rápidos

Portugal está no fim da lista dos países europeus a avançar com o licenciamento do espectro de 5G, a par com a Lituânia. Olhando para outros países, os procedimentos são mais rápidos, mas também bastante diferentes, com opções de faixas mais reduzidas de espectro.

5G Observatory Quarterly Report
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A Suíça atribuiu as licenças para os 3,6 GHz num leilão de apenas um dia, e na Grécia bastaram seis rondas para entregar as licenças e encaixar  372,3 milhões de euros.

Muito mais demorado foi o leilão na Alemanha, ainda em 2019, que atingiu também valores muito elevados para as licenças distribuídas entre 4 operadores,  entre os quais um novo entrante, chegando aos 6,55 mil milhões de euros. Foi um leilão multi faixa, nas bandas de 2,1 GHz e 3,6 GHz e teve uma duração "épica" de quase três meses.

Outro dos casos de longa duração de leilões foi nos Estados Unidos a faixa dos 3,7 GHz valeu já este mês 81,1 mil milhões de dólares e o leilão durou 2 meses, com 21 participantes mais de 5.600 licenças disponíveis.

12 dias com mais de 50 milhões de euros de encaixe

As mudanças no regulamento do leilão tinham sido avançadas como uma possibilidade pela Anacom e foram feitas de forma faseada. Primeiro o regulador impôs a duplicação do número de rondas diárias , avisando que poderia tomar novas medidas se esta não fosse eficiente. Ainda antes da entrada em vigor desta mudança as licitações diárias caíram para mínimos de 300 mil euros, com recurso a incrementos de 1 a 3% de valores, que se mantiveram até que esta possibilidade deixou de existir, a 27 de setembro.

A alteração de regras do leilão não foi bem aceite pelos operadores, que consideraram as alterações despropositadas, mas o efeito já se está a sentir. Nas últimas semanas, o encaixe potencial da atribuição das licenças de 5G já ultrapassou os 511 milhões de euros, impulsionado pela aceleração que resultou da mudança de regras que eliminaram a possibilidade dos operadores fazerem propostas pelos valores mínimos.

Em 12 dias as licitações somaram mais 55 milhões de euros, concentradas nas faixas dos 3,6 GHz, algumas das quais já valorizaram mais de 600% face ao valor inicial. Se as regras não tivessem sido alteradas seriam necessários quase 3 meses para conseguir esta soma.

Leilão 5G - Gráficos 9 meses fase principal
Leilão 5G - Gráficos 9 meses fase principal créditos: Tek

Até quando se poderá manter este ritmo? Esta é uma questão para a qual não há resposta, mas uma conta simples permite perceber que se a média diária de aumento do valor se mantiver nos 4,5 milhões de euros, até ao final do mês de outubro poderiam ser somados mais 270 milhões de euros, ultrapassando um encaixe de 780 milhões com as licenças do 5G, o que mais do que triplicava o valor de reserva de espetro inicialmente definido pela Anacom.

Um atraso de que ninguém beneficia?

A ideia de que a economia perde com o atraso do leilão tem sido sublinhada por operadores, pelo Governo e pelo regulador, e é um ponto no qual todos parecem estar de acordo. Mas há beneficiados?

“Pensamos que a duração do leilão já não beneficia ninguém, pois mesmo os operadores instalados e face aos avultados investimentos já efetuados na modernização da sua infraestrutura de rede, querem rapidamente começar a reconhecer o retorno financeiro dos mesmos”, afirmam Pedro Tavares e Sérgio Monte Lee.

O atraso na entrada de novos concorrentes no mercado é um efeito reconhecido, que pode estar a ser usado pelos operadores incumbentes, já instalados? “Não me parece que o tempo sirva para criar algum tipo de barreira à entrada de novos operadores, especialmente e uma vez mais considerando as regras que foram definidas para essa entrada”, defende Eduardo Fitas.

“O mercado já é bastante competitivo e a defesa da carteira de clientes é um tema prioritário para cada operador, por isso não vejo medidas novas, com impacto significativo, a beneficiarem deste atraso para serem implementadas, acrescenta o vice-presidente, responsável pela área de Comunicações, Media e Tecnologia da Accenture Portugal.

Mercado preparado e clientes à espera do 5G

Ao contrário do que aconteceu com o 4G, a tecnologia do 5G está testada, há investimentos em infraestrutura, casos de estudo de implementação e equipamentos à venda em número e diversidade significativa, e até a preços acessíveis.

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Um estudo da Deloitte a 430 empresas a nível mundial, e onde se incluíram 30 empresas nacionais, mostra que “mais de 75% dos executivos em Portugal acreditam que o 5G transformará por completo o seu setor nos  próximos 3 anos, considerando ser um forte catalisador de inovação que lhes permitirá, ao contrário das suas atuais infraestruturas de comunicações, criar novos modelos de negócio, melhorar a interação com o cliente final, lançar melhores produtos e serviços no mercado e tomar melhores decisões de gestão operacional”, referem Pedro Tavares e Sérgio Monte Lee.

E há até fatores que podem ser vistos como positivos para as empresas portuguesas.

“Claramente o fato de termos 5G lançado noutros mercados e já com algum grau de maturidade, beneficiará o mercado português em termos de número de opções comercialmente disponíveis. Talvez este seja mesmo o único ponto positivo que resulta do lançamento tardio do 5G em Portugal, associado á estabilidade e maturidade da tecnologia”, sublinham os sócios da Deloitte.

Do lado dos clientes finais, a existencia de diversidade de equipamentos, a preços acessíveis, cria maior apetência para o serviço, que os operadores já estão a anunciar há alguns meses. Não são só os smartphones de topo de gama que já trazem 5G, mas também os routers, e há telemóveis com preços a partir de 200 euros que já suportam a nova geração de serviços.

Mesmo assim Eduardo Fitas é cético em relação ao impacto que o 5G vai ter nos utilizadores quando o serviço estiver disponível. "Para um consumidor individual o acesso 5G por si só não permite mais do que um acesso mais rápido em modo móvel. Poderá ser útil para localizações mais remotas onde não existe uma oferta comercial de banda larga disponível, o que, pelos investimentos feitos pelos vários operadores em infraestrutura, será sempre uma questão de franjas da população", avisa.