O conceito de nómada digital não é novo mas ganhou um novo encanto depois das enormes e singulares restrições da pandemia. Quem já leva alguns anos de estrada nesta vida, reconhece que o fato não serve a qualquer corpo e que há aspetos importantes para conseguir juntar o melhor de dois mundos: realização pessoal e profissional. Se a ideia do nomadismo lhe agrada e até está a pensar mudar de vida, mas tem dúvidas se o caminho pode ser este, nada melhor do que ouvir quem já experimentou e encontrar as suas próprias respostas, para perguntas que vale a pena fazer.  

Estou pronto para uma mudança radical? 

A resposta talvez seja não, mesmo que pense que sim. Comprar um bilhete só de ida para qualquer local e começar uma vida nova é sair da zona de conforto. Fazê-lo aos poucos é a melhor forma de perceber se realmente tomou a decisão certa. “Essa é uma forma de perceber com uma grande margem de segurança se gostam ou não deste tipo de experiência. A parte cultural é muito mais desafiante”, refere Gonçalo Hall, que aconselha por isso qualquer candidato a nómada a não viajar para o outro lado do mundo, logo numa primeira experiência. Se bem que Isto não significa que as experiências radicais não possam resultar, atenção! Matilde Leitão começou a vida de nómada digital pela Índia, em 2017, e ainda não desistiu dela, embora confesse que hoje recomenda o inverso. 

Tek Gonçalo Hall
Gonçalo Hall é consultor na área do trabalho remoto e nomadismo digital, co-fundador da Remote Portugal e Remote Europe e liderou o lançamento da Digital Nomads Madeira, entre outras comunidades

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Na altura, a decisão teve em conta sobretudo o preço do bilhete de avião e o custo de vida no país. A experiência acabou por durar oito meses, cruzou quatro países na região e correu bem. "Sabíamos que não havia plano B, por isso o plano A tinha de resultar”, admite Matilde, mas também serviu para perceber a importância de preparar a viagem, antecipar as condições no destino e privilegiar algum tipo de estrutura, ou seja, locais com comunidades nómadas instaladas. É uma receita mais segura para evitar que a experiência acabe por se tornar desmotivante. 

Porque é que as comunidades são importantes?

As comunidades são uma peça-chave na vida dos nómadas digitais. A escolha de um novo destino passa normalmente pela pesquisa das comunidades que aí existem, que além de juntarem pessoas com interesses em comum, agregam serviços e informação útil para quem vem de fora. Fazer este “trabalho de casa” é essencial para minimizar imprevistos que, numa ou noutra viagem, acabarão por acontecer. As comunidades são também uma ajuda preciosa para uma integração rápida num local novo e podem fazer a diferença entre andar quase um mês a “apalpar terreno” para descobrir o melhor sítio para ficar, onde há internet, o que há para fazer, ou identificar tudo isso em poucos dias. Em grupos de Facebook, ou no YouTube, há muita informação sobre o assunto, diz Gonçalo Hall, que no top das preferências (extra Portugal - Ponta do Sol, Madeira) coloca Canggu em Bali, Chiang Mai na Tailândia ou Las Palmas, nas Canárias.      

Como devo escolher as melhores localizações para mim? 

Tek Matilde Leitão nomada
Matilde Leitão é a co-autora do site TravelB4Settle. Trocou a terapia ocupacional pelo marketing digital para poder conhecer o mundo. Neste momento faz também formação. É co-fundadora da Remote Portugal. Continua a viajar.

Ser candidato a nómada digital quando se trabalha como freelancer, ou como assalariado, pode fazer muita diferença. No primeiro caso, talvez o fuso horário do destino seja irrelevante. Já para quem trabalha numa empresa - partindo do princípio que a empresa aceita um modelo de trabalho completamente remoto, o que ainda está longe de ser o habitual - a questão da Time Zone é muito relevante, destaca Sofia Soares.

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Se a ideia é conhecer os lugares por onde vai passando enquanto trabalha, viver completamente desfasado do horário local para conseguir responder às obrigações profissionais não vai beneficiar, nem o trabalho nem o lazer. Atenção à Time Zone e capacidade de organização, para poder ser produtivo, sem perder o outro lado da experiência, recomenda Sofia. 

Como vou ganhar dinheiro?

Para um candidato a nómada com um emprego “tradicional”, o maior desafio pode passar por conseguir que a empresa aceite um modelo de trabalho não só remoto, como praticado a partir de diferentes países A solução pode passar por fazer algumas concessões, ir explorando novas paragens de forma intermitente e com facilidade em regressar à base sempre que é necessário.  

Para quem é freelancer, ou quer passar a ser, os cuidados são outros mas também devem existir. Mergulhar numa nova área de trabalho e lançar-se no mundo em simultâneo não será o mais prudente. É preferível preparar o terreno e se a ideia for explorar novas áreas profissionais, começar por fazer um estudo das opções disponíveis para as competências que já se tem e aprofundá-las. É o que partilham Matilde Leitão e Miguel Costa, co-autores do site Travelb4Settle, no curso que também desenvolveram - 12 Maneiras de trabalhar online (entre elas, assistente virtual, escritor digital, influenciador digital, ensino idiomas, etc). Matilde admite que metade das opções que listam no curso já as experimentaram.  Na verdade, o seu percurso como nómada digital também começou com uma mudança de área profissional, neste caso para o marketing digital e para a criação de conteúdos sobre viagens. Pelo caminho foi explorando outras opções, sobretudo depois da pandemia ter feito desaparecer os clientes que já tinha angariado, essencialmente da área do turismo.      

Tek Sofia Soares
Sofia Soares, experimentou a vida de nomada digital recentemente. Começou pela Ponta do Sol, na Madeira, onde passou dois meses

O que procura nesta experiência e que disponibilidade tenho para a abraçar?

Um nómada digital é alguém que viaja constantemente entre países, passando poucos meses em cada um deles, mas a verdade é que cabem diferentes “flavours” dentro do conceito. Gonçalo Hall, nómada e consultor na mesma área, reconhece que há, por exemplo, uma tendência crescente para uma espécie de nomadismo em part-time. Gente que nos meses frios viaja e permanece em países com melhor clima e depois regressa à casa de partida.  

Há também quem, por motivos profissionais, precise de “ser um híbrido entre o nómada digital e alguém que quer trabalhar remotamente”, como se descreve Sofia Soares, que experimentou a vida de nómada recentemente, ficou fã, mas quer manter um equilíbrio entre esse gosto e o modelo híbrido da empresa onde trabalha em consultoria TI.

Na verdade cada nómada traça o seu destino, a intensidade e a duração de cada experiência, de acordo com as condicionantes profissionais, familiares, ou aquilo que procura em cada momento. Matilde Leitão está agora na Bulgária. Desde dezembro do ano passado que faz de Bansko a sua base e a partir daí vai passando por outros países. No dia desta entrevista estava na Grécia. Nunca tinha tido uma base, nem passado tanto tempo no mesmo local desde que escolheu ser nómada. 

O que posso esperar e o que devo levar na “bagagem”? 

A tónica comum nos relatos dos nómadas digitais é a importância das comunidades, que além da já referida importância no processo de integração num local novo são um elemento central para a riqueza da experiência. “Conheci pessoas com as mesmas áreas de interesse, que me mostraram outras formas de ver e resolver problemas”, com um espírito de entreajuda que facilmente leva à colaboração em processos de trabalho, destaca Sofia Soares, sobre a passagem pela comunidade nómada da Ponta do Sol, na Madeira. Depois há as viagens e o que podemos retirar delas. “Viajar é das maiores aprendizagens do ser humano. Cresci com as viagens como em nenhum outro momento da vida”, admite Matilde Leitão, que ainda trabalhou algum tempo em Portugal na sua área de formação, mas rapidamente percebeu que não conseguia conciliar a terapia ocupacional com a vontade de viajar a tempo inteiro e acabou por dar prioridade à segunda opção.  

Tirar o melhor partido das duas vertentes da experiência nómada pressupõe, claro, algumas características pessoais, que os três nómadas com quem falámos referem: capacidade de adaptação (adaptabilidade), gosto por conhecer pessoas e socializar e disponibilidade mental para conhecer e contactar com culturas, religiões e formas de pensar diferentes, foram as mais frisadas.  

Este artigo integra o Especial O futuro do trabalho já chegou e tem várias formas.