
Por Miguel Oliveira (*)
A maioria de nós habituou-se a falar com “assistentes” digitais (chatbots) que fazem o que pedimos e depois aguardam novas ordens. Esse modelo está a ficar em final de ciclo. A próxima geração de inteligência artificial será composta por agentes: sistemas capazes de interpretar um objetivo amplo, planear vários passos e executá-los de forma autónoma, pedindo ajuda apenas quando encontram um impasse. Além dessa autonomia “intelectual”, destacam-se pelo arsenal de ferramentas a que recorrem: ligam-se à internet para obter nova informação, navegam por sites como qualquer utilizador e até podem autorizar pagamentos ou contratar serviços em nosso nome. O que muda não é a quantidade de inteligência, mas a agência — a faculdade de agir segundo critérios próprios para atingir o fim definido pelo utilizador.
Em psicologia, ter agência significa possuir iniciativa e responsabilidade. Na prática tecnológica significa que um agente pode reservar voos, ajustar o orçamento e aprender preferências sem receber novas instruções a cada clique. A transição de “assistente” para “agente” desloca a nossa relação com a máquina: deixamos de dar ordens minuciosas e passamos a delegar missões inteiras.
Esta mudança obriga-nos a repensar os processos clássicos de delegação. Até aqui a delegação era linear: escolhia-se uma tarefa, selecionava-se quem a faria, supervisionava-se a entrega. Com agentes, a tarefa é fatiada em subtarefas invisíveis, distribuídas e concluídas em segundos. Delegar torna-se um ato de desenhar limites (orçamento, privacidade, grau de risco) e não de indicar passos. Exige-se, portanto, uma nova literacia: saber formular objetivos claros, definir salvaguardas e criar mecanismos de auditoria contínua.
Delegar, contudo, não é largar o volante: ao confiarmos a um agente o poder de pesquisar, contratar e até movimentar dinheiro, passamos de meros utilizadores a arquitetos de regras. Significa desenhar travões – tetos de despesa, níveis de acesso a dados, gatilhos de validação – e vigiar continuamente se o sistema permanece alinhado com os nossos valores. Este exercício, além de mitigar riscos de decisões opacas ou gastos inesperados, convida-nos a olhar de frente para a própria identidade das profissões: que tarefas definem realmente um psicólogo, um contabilista, um médico, um professor? Ao redistribuir rotinas para a IA, temos a oportunidade de redesenhar a parceria homem-máquina de forma mais humana, reservando a garantia de que a visão e o julgamento humanos continuam a orientar cada decisão.
O impacto nas profissões será profundo. Funções baseadas em execução mecânica — compilar relatórios, preencher formulários, agendar logística — tenderão a ser absorvidas por agentes. Ao mesmo tempo surgirão papéis centrados na curadoria (garantir qualidade dos resultados), na orquestração (combinar vários agentes) e na ética (vigiar alinhamento de decisões). Profissões não desaparecem em bloco; fragmentam-se em tarefas, algumas automatizáveis, outras reclamando criatividade ou julgamento humano. Já se vislumbram empresas onde equipas humanas acompanham “colegas” sintéticos que tratam da parte repetitiva, libertando tempo para planeamento estratégico.
Neste novo equilíbrio, o papel do ser humano desloca-se de operador para arquitecto de problemas. Compete-nos escolher metas, negociar trade-offs, avaliar impactos sociais. Tal como delegamos a um contabilista sem abdicar da responsabilidade fiscal, delegar a um agente não nos desobriga de entender as premissas nem de responder pelas consequências.
O salto para a era dos agentes não é apenas técnico. É organizacional e cultural. Quanto mais agência dermos às máquinas, mais teremos de aperfeiçoar a arte de delegar — definindo metas, fronteiras e critérios de sucesso — e mais valor ganhará tudo aquilo que continua a requerer talento humano: criatividade, empatia e sentido ético.
(*) Coordenador do Programa PsicologIA na Transformação Social da Ordem dos Psicólogos Portugueses
Pergunta do Dia
Em destaque
-
Multimédia
Battlefield 6 mantém o foco na destruição dos cenários na narrativa e combates multijogador -
App do dia
Ainda não sabe o que fazer nas férias? Aproveite para aprender uma nova língua com a LingQ -
Site do dia
Arquivo histórico do museu Harley-Davidson ganha mais vida com IA da Google -
How to TEK
Ofertas "incríveis" de emprego? Publicidade não solicitada? Saiba como lidar com as chamadas de spam
Comentários