Cientistas publicam "fotografia" mais detalhada de sempre do cancro

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O conjunto de estudos publicados na Nature junta contributos de mais de mil cientistas que fornecem uma imagem quase completa de todos os tipos de cancro. Com esta informação será mais fácil adaptar tratamentos ou desenvolver diagnósticos precoces.
Cientistas publicam
Nature

Se o cancro fosse um puzzle de 100 mil peças, até hoje faltavam 99% dos elementos para o construir, mas um conjunto de estudos publicados na Nature vem dar um novo detalhe ao que se sabe sobre quase todos os tipos de cancro. O projeto Pan-Cancer Analysis of Whole Genomes (PCAWG) analisou o código genétido de 2.658 tipos de cancro, num trabalho que envolveu mais de 1.300 cientistas de 37 países.

As mutações no genoma que são causadas pela aquisição de alterações somáticas numa célula em genes importantes são a origem do desenvolvimento do cancro. Estas mutações de ADN alteram a regulação do crescimento das células e a forma como interagem com o ambiente, mas até agora as pesquisas sobre o genoma do cancro estavam focadas nos genes codificadores de proteinas, que representam apenas 1% do genoma.

O PCAWG decidiu por isso realizar o sequenciamento de todo o genoma e a análise de mais de 2.600 tipos de cancro primários e os tecidos que correspondem a 38 tipos distintos de tumor, identificando mutações relacionadas com as áreas reguladoras dos genes e a implicação na evolução de tumores em vários tipos de cancro. Agora pode abrir caminho para a sequenciação completa de todos os tipos de cancro.

Simplificando o impacto do trabalho, esta é a "fotografia" mais completa até agora do cancro, e pode trazer um desenvolvimento importante na forma como se preparam tratamentos mais focalizados e se desenvolvem sistemas de diagnóstico precoce.

Um estudo do Eurostat revelou esta semana que o cancro é responsável por mais de um quarto das mortes na União Europeia, com o cancro do pulmão a ser o mais fatal entre os homens e o da mama entre as mulheres. Em Portugal, metade da população tem pouco ou nenhum conhecimento sobre tratamentos para o cancro do pulmão, que é o quarto tipo de tumor com mais incidência na população portuguesa e o mais fata.

Os dados divulgados pelo gabinete oficial de estatísticas da UE por ocasião do Dia Mundial da luta contra o Cancro, revelam que, em 2016, quase 1,2 milhões de pessoas morreram de cancro no conjunto dos 28 Estados-membros, o que representa 26 por cento de todas as mortes registadas na União Europeia.

Estudo exaustivo sobre mas de 2.600 tipos de cancro

O trabalho que começou ontem a ser publicado, mas que hoje já tem novos artigos, integra 23 papers e inclui documentos que descrevem o conjunto principal de análises conduzidas pelo PCAWG Consortium, apresenta dados, ferramentas e outros recursos úteis para quem procura explorar ainda mais esse conjunto de dados.

Entre as decobertas feitas está o facto de que cada tumor teve, em média, quatro a cinco mutações no driver, mas no total, o projeto PCAWG foi capaz de encontrar pelo menos uma mutação de driver em cerca de 95% das amostras de tumor, em comparação com apenas 67% no sequenciamentos anteriormente realizados de exoma, como explicou Peter Campbell, do Wellcome Sanger Institute, durante uma conferência citada num artigo da Science. Isso significa que muitos mais pacientes com cancro podem agora ser direcionados para a utilização de um medicamento que tem como alvo a proteína produzida por esse gene condutor.

Os cientistas também descobriram como rastrear a evolução das mutações com um única biópsia de tumor. Este grupo confirmou que as mutações iniciais geralmente surgiam anos ou décadas antes do diagnóstico dos cancros, sugerindo que muitos poderiam ser detectados e tratados muito mais cedo.

Outra equipa encontrou novos padrões de mutações que resultam de exposições ambientais, como o fumo do tabaco. Os artigos exploram tópicos como a frequência com que os genomas de tumores contêm ADN de vírus que podem ter desencadeado o cancro, o que acontece em 13% das amostras.

Marcin Cieslik e Arul Chinnaiyan, da Universidade de Michigan, que assinam um comentário sobre os estudos publicados, referem que agora se pode obter informação com testes mais baratos do que o sequenciamento completo do genoma. "Ainda não se sabe se o sequenciamento de genoma inteiro é o melhor método na clínica", afirmam, mas a riqueza de dados do estudo do PCAWG, que está disponível gratuitamente para investigadores vai ajudar os biólogos a entender os mecanismos do cancro.

Estes cientistas explicam ainda que os medicamentos direcionados podem ser menos tóxicos e mais poderosos do que a quimioterapia, mas que os tumores da maioria dos pacientes voltam a crescer quando algumas células que resistem ao medicamento começam a expandir-se. Por isso o paciente pode precisar de outro medicamento para matar as células resistentes.

"É verdade que esse tipo de sequenciamento não significa que todos os cancros são curados […] Mas indica onde devemos pensar em desenvolver medicamentos para prevenir a resistência ou tratá-la quando ela surgir", diz Peter Campbell. "Em última análise, o que queremos fazer é usar essas tecnologias para identificar tratamentos personalizados para cada paciente", afirmou.

Uma nova forma de análise de dados do cancro

Há mais de uma década que os cientistas têm trabalhado na descodificação dos genomas do cancro, mas a maioria dos dados tinham dados clínicos limitados dos dadores das amostras. As primeiras amostras recolhidas para o Atlas do Genoma do Cancro, o projeto de sequenciamento realizado de 2006 a 2018 e co-financiado pelo Instituto Nacional do Cancro dos EUA e pelo Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano, tinham com pouco mais informação do que o género, diagnóstico e idade do doador, mas faltavam dados do registro da família ou do histórico médico dessa pessoa, tipo de tratamento que receberam e como responderam, o que é essencial para perceber como se pode colocar o genoma a funcionar para ajudar os doentes.

Os cientistas dizem agora que a nova geração de projetos de sequenciamento do genoma do cancro está a mudar isso, embora recolher informação clínica detalhada seja ainda difícil e caro, e signifiquem também um maior risco de exposição pessoal e de potencial violação de proteção de dados.

Várias organizações estão a trabalhar para transformar os registros de saúde num formato que possa ser acessivel e estudado com mais facilidade, mas em segurança. O projeto GENIE da Associação Americana de Pesquisa em Cancro compilou 70.000 registros de sequências de ADN de tumores e dados clínicos do mundo real, enquanto o projeto de 100.000 genomas do Reino Unido também pretende combinar sequências de ADN com informações clínicas para uma variedade de condições. O International Cancer Genome Consortium, que coordenou grande parte do trabalho de sequenciamento de tumores até agora, lançou também uma nova fase, desta vez com foco em informações clínicas.

Os investigadores reconhecem que reunir um grande número de amostras é uma maneira poderosa de encontrar alterações genéticas que podem gerar cancro e fornece um ponto de partida para aprender como é que isso acontece, mas o retorno real do investimento vai acontecer quando essas informações puderem ser usadas para adaptar a terapia a pacientes individuais. E para que isso seja alcançado, é essencial obter informações básicas clínicas sobre os participantes do estudo.

Mesmo assim, um catálogo de mutações não é a solução completa. Quando os projetos de sequenciamento do genoma do câncer foram lançados, esperava-se que eles fornecessem um catálogo das mutações que dão origem ao cancro e revelassem padrões amplos nos quais os pesquisadores poderiam basear o desenvolvimento de medicamentos. Mas muitos cancros revelaram-se mais complexos do que o esperado e conjuntos muito diferentes de mutações podem dar origem ao mesmo cancro.

Os dados obtidos no estudo da PCAWG poem ser livremente acedidos através do site e descarregados para análise dos biólogos e cientistas envolvidos na investigação do cancro e o software desenvolvido para o consórcio para alinhamento e controle de qualidade também é público e foi publicado sob a licença GNU General Public License v3.0. O software de análise está num repositório do GitHub, onde foram guardados os modelos de análise do estudo.

Nota da Redação: Foram adicionadas imagens e um vídeo

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