Recentemente Portugal recebeu a visita de Jason Della Rocca, a propósito de um bootcamp realizado em Lisboa para developers e produtoras indie, com o objetivo de os ajudar estratégias de apresentação de projetos a financiadores e como chamar a atenção de publishers internacionais. O TEK esteve no arranque do bootcamp e teve a oportunidade de entrevistar o especialista e investidor da indústria de gaming sobre a sua missão na passagem pelo país.

Questionado sobre se a sua presença no evento significava que Portugal tinha o potencial de crescimento da indústria de gaming e capacidade de mostrar os seus projetos ao mundo, Jason Della Rocca respondeu com um “sim absoluto”. “Os jogos bem-sucedidos podem chegar de qualquer lado e têm chegado de todo o lado. Não precisas de fazer parte dos grandes hubs como a Califórnia, Londres ou Montreal”.

O especialista diz que os videojogos são uma indústria global, um negócio global, onde os parceiros financeiros fecham negócios em todas as partes do mundo. “Se vens de Portugal ou onde queres que estejas, isso não interessa”. Nesse sentido, não existe nenhuma razão pelo qual um estúdio português, “que tenha talento e esteja a fazer um jogo que seja algo especial” não encontre um parceiro de financiamento que o suporte.

Nova Zelândia e Turquia são referências atuais

Mas será que um país ou região precisa de um grande título que funcione como uma bandeira para chamar a atenção das grandes editoras para o potencial dos seus estúdios? Na visão de Jason Della Rocca, isso ajuda, mas não é necessário. “Um jogo bem-sucedido não significa que exista algo especial na terra ou na água. Mas se a cada seis meses for lançado um jogo blockbuster produzido por um estúdio português, então os investidores vão questionar-se sobre o que se passa em Portugal e vão quer cá vir”. Afirma que isto aconteceu em países como a Finlândia há alguns anos nos jogos mobile; está a acontecer agora na Turquia, em Istambul, onde estão a surgir alguns sucessos. E aconteceu há vários anos em Montreal.

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A razão pelo qual ajuda é que “o dinheiro segue o sucesso, há mais confiança. Um estúdio de Lisboa lançou um jogo que foi bem-sucedido, então o seguinte também poderá ser, e o próximo…” Ajuda, mas está longe de ser um fator predeterminante, na sua visão, para um estúdio conseguir um acordo de financiamento.

Considerando a referência de Montreal como hub de produção de jogos, pelos estúdios da Ubisoft, Electronic Arts e Warner Games, para dar alguns exemplos, o que poderia ser replicado do Canadá pelos estúdios portugueses? “Em muitas situações já nem uso Montreal como uma referência, mas na altura foi influenciado pelos incentivos dos impostos, há 25 anos”. Atualmente esses incentivos têm menos impacto, segundo o especialista.

Estúdios portugueses de videojogos à procura de oportunidades de internacionalização e financiamento
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As referências atuais são a Finlândia e Nova Zelândia. Este país, que refere como muito pequeno, com 5 milhões de pessoas, tem “atualmente um centro de excelência, estúdios, muitas startups e indies que estão a produzir jogos de PC, consolas e alguns para smartphones com sucesso global”. O centro de excelência está a financiar estúdios em fase inicial, a investir dinheiro e a assumir riscos em novos protótipos e propriedades intelectuais. “Têm uma associação muito ativa, uma agência de negociação de desenvolvimento.

Nesse sentido, ao passo que Montreal, no seu início, procurava a afirmação de grandes estúdios, "o que é OK, mas a longo prazo não é a estratégia mais correta. O certo, para construir uma indústria e um ecossistema, é suportar as startups e estúdios independentes que estão a surgir, e possibilitar-lhes que sejam bem-sucedidas globalmente. Quando isso acontece, novos investimentos vão chegar, as editoras vão querer encontrar as melhores oportunidades, como uma Ubisoft que se calhar vai querer montar cá um estúdio, à boleia do sucesso”.

Bootcamp APVP
Bootcamp APVP

Na visão do especialista, não se deve querer começar por atrair os grandes publishers, mas sim permitir que os estúdios locais consigam obter o máximo de sucesso a nível internacional. “Neste aspeto considero que a Nova Zelândia está a fazer um melhor trabalho que Montreal”.

Sobre a importância de associações como a APVP, Jason Della Rocca diz que é crítico. “Os ecossistemas mais bem-sucedidos dos territórios em todo o mundo são aqueles que considero bem-coordenados, ou seja, indústria, associações, academia, Governo, financiamento que falem entre si. São precisos todos, de forma coordenada, para alavancar a indústria para ter um elevado nível de sucesso”. Considera que as associações funcionam como a cola entre os diferentes stakeholders, “têm um papel crítico para fazer lobbying aos governos, para juntar os estúdios, para ver que falhas existem e que programas podem aumentar as capacidades das pessoas”.

Explicando a sua missão em Portugal, Jason Della Rocca refere a importância deste bootcamp, do evento de networking a acontecer em Lisboa. Realizou também Master Class com diversos tópicos de negócio, tais como modelos de financiamento, análise de mercado, construção de tração, como realizar um pitch, assim como estratégias de marketing.

Para o último dia, reservou sessões de mentoria 1-a-1, em que a APVP selecionou meia dúzia de estúdios, com potencial de sucesso, para apresentar as suas ideias durante uma hora, cada um. “Vou olhar para o seu projeto, o seu negócio, o seu pitch e vou dar feedback e conselhos personalizados. “Se eu vir alguma coisa verdadeiramente especial, tenho amigos entre investidores e editoras, em todo o mundo, pode ser que arranje alguma coisa, mas isso não faz parte da missão principal”.

Necessidade de angariar base de seguidores antes de procurar financiamento

Olhando para as tendências atuais de financiamento de projetos, Jason Della Rocca diz que existe algo chamado “evidence based investing”, ou seja, “agora, mais que nunca, o risco do peso está no estúdio para gerar validação de marketing de que existe audiência para o seu jogo”. Em termos práticos, isso reflete-se em listas de desejos dos jogos no Steam, “colocar um trailer no IGN e obter milhões de visualizações”, ter uma conta no Discord com uma comunidade ativa ou mostrar resultados positivos de uma campanha no Kickstarter.

“Se eu apenas tiver uma equipa e uma ideia e for fazer o pitch a editoras e investidores, muito provavelmente vão dizer algo como parece giro, mantém-me atualizado, regressa quando tiveres feito mais algum progresso”. O especialista diz que não se comprometem, porque recebem tantas propostas. “Mas se aparecer com uma equipa e um bom projeto, com 50 mil registos na lista de desejos do Steam e um trailer com milhões de visualizações, é isso que eles querem”.

As pessoas que têm o dinheiro não têm ideia se atualmente as tendências são os ninjas, dinossauros, robots ou naves, um sandbox ou um RPG de mundo aberto. Isto porque muitos investidores não trabalharam nesta indústria, “podem ser pessoas inteligentes, podem ser boas, mas cada vez mais têm menos capacidade de ver com os seus próprios olhos o potencial dos jogos, saber se este é especial ou se vai ser um êxito”. Como no passado foram tomados vários riscos, com muitos investidores a perderem muito dinheiro e agora, com tantos jogos a serem apresentados, os investidores precisam destes indicadores antes de tomarem decisões das escolhas dos projetos.

Bootcamp APVP
Bootcamp APVP

Na visão de Jason Della Rocca, os estúdios têm agora o dobro do trabalho para fazer: “todo o trabalho a fazer um bom jogo, mas agora tem também todo o trabalho em anunciar o projeto, criar um trailer, abrir uma página do Steam, encontrar uma comunidade e fazer o marketing. Terão de fazer isso tudo antes que alguém se comprometa a financiar”. Aponta ainda a importância de boas relações com influenciadores que ajudem a tornar o projeto conhecido.

Questionado sobre um conselho aos estúdios que estão em fase de procura de financiamento para os seus projetos, tem vindo a trabalhar na ideia de ter um trailer primeiro. “Quando iniciam um projeto, a primeira coisa que vão querer produzir é o trailer de gameplay, o mais rápido possível, para que possam publicar no YouTube, começar a somar visualizações, algumas pessoas ficarem com vontade de adicionar à lista de desejos”. Isto impera sobre qualquer estratégia de decisão de criar um trailer apenas quando o jogo está pronto. A ideia é agarrar as atenções desde o início com a ajuda do trailer.

Olhando para o estado da indústria, onde se vê as grandes editoras como a Ubisoft ou a Electronic Arts a encerrar estúdios, com problemas de retorno nas grandes apostas. Jason Della Rocca diz que gastar entre 5 a 7 anos a produzir um jogo, investir 200 milhões de dólares “é demasiado desconectado do mercado e dos jogadores. Quando se faz jogos indie, há uma tendência de desenvolvimento aberto, interagindo com os fãs, fazendo testes internos. Dessa forma têm a capacidade de ajustar o projeto com base no feedback da comunidade. E quando o lançam, não estão a fazer no meio de nada, já têm seguidores, uma base de fãs”.

Salienta que os jogos AAA, os estúdios escondem-se na sua gruta, fazem algo durante sete anos e assumem que todos o vão querer. “É algo demasiado desconectado. É uma excelente altura para ser um estúdio pequeno e independente, a fazer jogos com a ajuda da comunidade, que também vai ajudar a ser bem-sucedido”.