A indústria automóvel é uma das que nos últimos anos tem sofrido maiores transformações. Os marcos mais recentes podem ser a afirmação dos elétricos e o desafio da condução autónoma mas, cada vez mais, o que se passa dentro de um automóvel é um assunto que vai muito para além da eficiência e do conforto da condução.
A conectividade abriu as portas a um mundo de serviços, que permitem ligar o carro a tudo o que está à sua volta e levar a personalização quase ao limite. A sustentabilidade e as metas ambientais obrigam fabricantes e parceiros a desenhar produtos e soluções mais eficientes. Já para não falar nos novos conceitos de mobilidade, que pedem soluções partilhadas, integração de serviços, novos produtos e novas formas de tirar partido dos produtos que já existem, como acontece com o automóvel, que caminha para se transformar em mais um espaço de trabalho - ou de lazer - quando as viagens já não precisarem da atenção permanente do condutor.
À volta de tudo isto está um universo de empresas e equipas de investigação que querem ter uma palavra a dizer no futuro da condução e da mobilidade. Que desenvolvem todo o tipo de sensores, inventam novos materiais, redesenham fábricas, criam plataformas para integrar os serviços que os veículos podem oferecer, reinventam soluções de transporte e testam sistemas que vão ajudar a gerir melhor o tráfego e as cidades.
Em Portugal há um bocadinho de tudo isto a acontecer, pela mão de multinacionais que escolheram o país para fixar fábricas e centros de desenvolvimento, mas também pela mão de empresas portuguesas, de universidades e centros de investigação e desenvolvimento.
Em Braga, por exemplo, há quase duas décadas que são desenvolvidas tecnologias e soluções para melhorar a experiência de condução, pela mão da Bosch. A unidade onde hoje trabalham 3.800 pessoas, 400 no desenvolvimento de novas soluções, começou pelos rádios e sistemas de navegação para carros, camiões e outros veículos comerciais. Passou para os sensores que podem ajudar a tornar a condução mais segura e desenvolveu soluções que integraram os sistemas de controlo de estabilidade, travagem (ABS), ou cruise control de vários fabricantes.
Hoje um dos focos de trabalho do Centro de Desenvolvimento da Bosch Car Multimédia em Braga está nos desafios da condução autónoma. “Na condução autónoma, o carro será um sistema inteligente semelhante ao cérebro humano: terá sensores para ver/perceber o ambiente circundante, e sensores para saber qual a sua localização exata e então computar/interpretar todos os inputs, planear e decidir para onde se movimentar”, como explica Armin Karle, responsável da unidade. Ir além do que já se consegue fazer com os sensores disponíveis no mercado é uma das prioridades das equipas em Braga, que há quase uma década aceleram muitos dos projetos desenvolvidos em colaboração com a Universidade do Minho. A parceria de longa data entre a empresa e a UM já se materializou em vários projetos, que deram o mote para dezenas de patentes e que não se ficam pelo trabalho na área dos sensores.
“Na condução autónoma, o carro será um sistema inteligente semelhante ao cérebro humano: terá sensores para ver/perceber o ambiente circundante, e sensores para saber qual a sua localização exata e então computar/interpretar todos os inputs, planear e decidir para onde se movimentar”, Armin Karle, Bosch Car Multimedia
Desde 2013, contabiliza António Pontes, professor associado da Escola de Engenharia da Universidade Minho e pivot da parceria Bosch-UMinho, “temos tido uma média anual de 60 patentes”, ligadas a estes projetos conjuntos. Uma das tecnologias desenvolvidas em parceria chama-se Optical Bonding e refere-se a ecrãs para veículos que permitem maior contraste, assegurando uma melhor visibilidade em ambientes de muita luminosidade, por exemplo. Neste momento são três os projetos em curso e envolvem cerca de 500 investigadores.
Outra vertente importante de trabalho em Braga, na Bosch, é a que se relaciona com as e-Bikes e outros veículos de duas rodas, já que a unidade também fabrica monitores e soluções de navegação de última geração para este segmento.
CEiiA aposta nos veículos leves de duas e quatro rodas
Esta é aliás uma das áreas onde as empresas e centros de investigação estão a trabalhar para ajudar a desenhar o futuro da mobilidade, partindo do pressuposto que os veículos de duas rodas e os pequenos carros vão ser elementos indispensáveis nos ecossistemas de mobilidade das cidades a curto-médio prazo.
Esta é precisamente uma das áreas de trabalho atuais do CEiiA - Centro de Engenharia e Desenvolvimento, que tem projetos com vários construtores para criar novas soluções no segmento de veículos leves de quatro e duas rodas. Em causa estão projetos orientados para plataformas de serviços associadas a modelos de gestão desta oferta, numa lógica de partilha do uso e da posse, por exemplo, mas também há projetos em curso para desenvolver novos veículos.
Um deles reedita uma parceria com os noruegueses da Buddy, que têm um microcarro elétrico com o mesmo nome, desenvolvido pelo CEiiA em 2009. Novamente pelas mãos do centro português, o carro que já entrou num filme protagonizado por Matt Damon, vai agora ganhar “uma nova vida”, como explica Helena Silva. “A ideia é manter o conceito mas dar-lhe novas funcionalidades e serviços”, acrescenta a diretora executiva do CEiiA.
O CEiiA vai dar uma nova vida ao microcarro elétrico Buddy: “a ideia é manter o conceito mas dar-lhe novas funcionalidades e serviços”, explica a diretora executiva, Helena Silva.
Na área do software para sistemas de mobilidade e veículos, uma das grandes tendências do sector passa pela criação de serviços que permitam personalizar a experiência dos condutores, em função das necessidades em cada momento e contexto. É o que faz por exemplo a Volkswagen Digital Solutions (VWDS), que a partir do centro de inovação em Portugal criou uma plataforma de serviços para os camiões da MAN, a partir da qual os condutores podem escolher ou dispensar novas funcionalidades a bordo, que são atualizadas over-the-air.
Novas estratégias para atrair talento
Criar e manter equipas para responder às necessidades das empresas que escolhem Portugal para fixar este tipo de centros começa no entanto a ser um desafio, como reconhecem VWDS e Bosch, embora ambas as empresas defendam que o valor das respetivas propostas, para quem integra as suas equipas, ainda consiga fazer a diferença e atalhar caminho até aos melhores recursos.
Ainda assim, em novembro e pela primeira vez, a Bosch vai organizar um evento de recrutamento que chama os candidatos a Braga, para experimentarem as inovações que aí estão a ser desenvolvidas. O objetivo é preencher 90 vagas, que vão sobretudo integrar as equipas ligadas ao desenvolvimento de hardware e software para carros autónomos e outras tecnologias na área da mobilidade.
Gloria Araujo-Woermann, diretora de recursos humanos da Bosch Car Multimédia em Braga reconhece que “na situação atual de “War for Talents”, temos de ir por novos caminhos, os modelos clássicos de “post and pray” ou de “active sourcing” de candidatos, já não se apresentam como o método mais efetivo de atrair e contratar talento”.
Isso é ainda mais verdade para determinados perfis, altamente qualificados, em áreas como data science, deep learning, machine learning, AI, robótica, ou computer vision, que serão os principais alvos do recruitment day que a empresa está a preparar.
“Na atual 'War for Talents', temos de ir por novos caminhos, os modelos clássicos de 'post and pray' ou de 'active sourcing' de candidatos, já não se apresentam como o método mais efetivo de atrair e contratar talento”, Gloria Araujo-Woermann, Bosch Car Multimédia
Na Volkswagen Digital Solutions, a escassez de talento para já é mais uma preocupação que um problema, mas com planos para quase duplicar a equipa no próximo ano, esta unidade do grupo Volkswagen já está a tomar medidas. Uma das estratégias passa por implementar modelos de trabalho novos, híbridos, menos dependentes da localização física da empresa que, para já, não tem planos de expansão a outras cidades portuguesas, além de Lisboa.
“O mercado em Portugal está a aquecer. Muitas empresas estão a vir para Portugal e isso tem impacto”, admite Jürgen Reimann, explicando que, além dos modelos híbridos, a empresa apostou também recentemente na criação de uma academia júnior que já “é enorme um sucesso”.
À parte desta questão, o CEO da VWDS tem quase só elogios para fazer a Portugal, como destino de investimento para uma operação com esta da marca alemã. O seu principal destaque vai para o nível de inglês dos recursos portugueses, que “é muito bom e muito superior à média dos países no sul da Europa”. O responsável diz mesmo que trabalhar num ambiente internacional com as capacidades de inglês das equipas portuguesas é "verdadeiramente um tesouro".
Menos positiva, reconhece, é a burocracia para trazer para Portugal colaboradores que venham de fora do espaço da União Europeia, quando não é possível encontrar esses perfis localmente, o que arrasta os processos e acaba por ter impacto no ritmo dos projetos.
Nesta questão do talento, o ponto comum na abordagem das duas multinacionais que apostaram em Portugal, ainda que com estratégias diferentes, passa pela aproximação a quem está a entrar no mercado de trabalho, um foco adotado por muitas empresas, nesta como noutras áreas, que tem provocado mudanças nas próprias escolas e agilizado a transferência de tecnologia.
Trabalhar num ambiente internacional com as capacidades de inglês das equipas portuguesas é "verdadeiramente um tesouro", Jürgen Reimann, Volkswagen Digital Solutions
António Pontes partilha a experiência da Universidade do Minho para admitir que a parceria com a Bosch tem dado o mote para fazer ajustes no programa dos cursos, que permitam aproximar os alunos deste contexto, ou para criar laboratórios na Universidade mais adaptados a essa realidade.
“Este tipo de colaboração entre universidade e indústria é fundamental para capacitar os nossos recursos humanos e também para facilitar a transferência de tecnologia. Este tipo de projetos deviam ser cada vez mais valorizados”, refere o responsável, acrescentando que a Bosch já absorveu uma centena de graduados pela UM.
Serviços e nichos de mercado podem fazer a diferença
Mesmo sem fabricantes de origem em Portugal, a indústria automóvel historicamente tem mantido um papel importante na economia local, que tem conseguido ir além das fábricas que alguns construtores fixaram no país e do que produzem as empresas que orbitam à sua volta.
“Temos uma importante indústria automóvel que já conseguiu atrair projetos muito interessantes para Portugal”, sublinha Helena Silva. “Em 2008 fomos pioneiros na criação de uma rede interoperável de postos de carregamento elétrico e isso permitiu que Portugal se posicionasse nas plataformas de mobility as a service, de que é exemplo o Mobi Cascais”.
A responsável do CEiiA lembra também, que Portugal foi pioneiro ao começar a discutir a valorização das emissões evitadas e a dar valor ao CO2 e recorda que foi aquele centro quem desenvolveu com a Uber o serviço Uber Green, que só opera com veículos sem emissões e quantifica as emissões evitadas com essa opção. O caso teve espaço na Cimeira do Clima em Paris, ainda em 2015, e acabou por inspirar o desenvolvimento da plataforma de sustentabilidade AYR, já distinguida pela Google, implementada numa cidade brasileira e em Matosinhos e a caminho de outras cidades em Portugal.
Na opinião de Helena Silva, esta tem sido e continuará a ser uma das melhores formas de Portugal influenciar a indústria da mobilidade, apostando nos serviços e em alguns produtos de nicho. No segmento dos veículos leves, dá o exemplo da indústria nacional de duas rodas, forte mas ainda com muito potencial por explorar.
As oportunidades na área dos serviços e dos produtos, em áreas de nicho, também são identificadas por António Pontes, que acrescenta a qualidade dos recursos humanos. “A falta de uma indústria com construtores de origem é uma desvantagem para Portugal, mas em compensação as universidades formam bons recursos” que podem e estão a ser valorizados pelas grandes multinacionais do sector, como mostram os investimentos canalizados para Portugal.
A Critical Techworks, joint-venture da Critical Software e da BMW, este ano quer contratar 500 novos colaboradores em Portugal, a Mercedes-Benz.io anunciou planos para reforçar a equipa com mais 100 colaboradores.
Critical Techworks e Mercedes-benz.io, que não conseguiram responder em tempo útil às questões do SAPO TeK para este artigo são outros dois exemplos disso mesmo. A Critical resulta de uma joint-venture entre a portuguesa Critical Software e a BMW e tem trazido para Portugal o desenvolvimento de várias soluções e serviços já presentes nos carros do grupo alemão. Trabalha também em áreas como a condução autónoma. Em declarações à Lusa, a empresa revelou recentemente que os elétricos i4 e iX, que a BMW lançará em breve, integram várias tecnologias desenvolvidas em Portugal, dos sistemas de controlo do automóvel ao infotainment. Este ano, a empresa quer contratar 500 colaboradores para chegar aos 1.360 e prevê faturar 80 milhões de euros, mais 60% que no ano passado.
A Mercedes-Benz.io, usa o hub de inovação criado em Portugal para desenvolver soluções digitais para a área do marketing e vendas. Tem uma equipa local de 200 colaboradores e planos para contratar mais 100 ao longo do ano. Na Alemanha tem outros dois centros idênticos.
A criação das muito aguardadas Zonas Livres Tecnológicas pode ser mais um elemento a favor de Portugal na disputa de investimentos internacionais nesta área do automóvel, sobretudo aqueles que se relacionam com inovações que ainda não chegaram ao mercado, como a condução autónoma e um conjunto de serviços associados à conectividade das cidades.
A medida faz parte do Plano de Ação para a Transição Digital. O enquadramento foi aprovado no verão e a medida identificada como prioritária, mas para já Matosinhos continua a ser a única cidade com este estatuto ativo, desde 2019. Isto não impede no entanto que outras cidades do país estejam a criar condições para testar tecnologias inovadoras. É o que tem feito Aveiro, que montou um verdadeiro laboratório na cidade para testar soluções de mobilidade, uma infraestrutura que tem juntado a Universidade de Aveiro a vários parceiros da indústria, nacionais e estrangeiros.
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