Por Sónia Fernandes (*)

Durante décadas, modernizar a Administração Pública significava, literalmente, acabar com o papel. Pilhas de dossiers, carimbos, assinaturas e cópias em duplicado (e triplicado) eram o retrato de um Estado com ambições de ser mais leve, ágil, eficiente e sustentável.

A primeira vaga da transformação digital chegou para mudar isso: converter papel em ficheiros digitais, processos físicos em fluxos eletrónicos, armários em servidores. Foi um avanço notável. A desmaterialização reduziu custos de impressão e conservação, acelerou trâmites e abriu caminho para serviços públicos muito mais rápidos e práticos para empresas e cidadãos.

Mas esta transição não se fez apenas nos gabinetes do Estado; refletiu-se em toda a sociedade. Em 1990, cada europeu consumia, em média, entre 160 e 180 quilos de papel e cartão por ano, segundo a Confederation of European Paper Industries (CEPI). No caso de jornais, revistas e papel de impressão, o consumo caiu mais de 50% nas últimas duas décadas – o que espelha uma alteração cultural caraterizada por menos papel, em quase todos os setores, incluindo o público.

Com esta mudança, algo mais se transformou. A digitalização deixou de ser apenas uma questão de produtividade para se tornar também uma questão de responsabilidade. Menos papel significa menos desperdício, menos emissões e maior alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, em particular com o ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis) e o ODS 12 (Produção e Consumo Sustentáveis). A desmaterialização dos processos é, por isso, não apenas um efeito da evolução tecnológica, mas também uma decisão económica, ambiental e, em última instância, civilizacional.

Mas o combate ao papel foi apenas a primeira camada da transformação digital. E, como todas as revoluções, também esta evoluiu depressa. Hoje, mais do que converter papel em bytes, o desafio é transformar informação em conhecimento. Para tal, o novo passo é dotar os sistemas de gestão documental de capacidade cognitiva: fazê-los pensar, interpretar e agir.

Falamos de sistemas que não se limitam a arquivar, organizar ou ligar informação de diferentes formatos ou proveniências; mas que reconhecem padrões, classificam automaticamente, verificam conformidade legal e atribuem prioridade aos fluxos de trabalho. Com a introdução de inteligência artificial nestes sistemas, surgem os chamados agentes de IA, capazes de ir um passo mais longe: analisam contextos, detetam anomalias e antecipam ações sem depender de comandos humanos. São, num certo sentido, novos “funcionários invisíveis” do Estado; incansáveis e rigorosos no cumprimento das suas tarefas (desde que bem treinados).

Os ganhos desta evolução traduzem-se em menos papel, claro, bem como em menos erros e menos tempo desperdiçado em tarefas que as máquinas executam melhor e mais rapidamente do que os humanos. Um estudo do European Centre for International Political Economy (ECIPE) estima que os governos da União Europeia poderão economizar até 450 mil milhões de euros por ano, através da modernização dos serviços públicos com mais automação documental, cloud-computing e IA.

Ainda assim, o impacto não se mede só em euros: mede-se também em confiança. Com a inteligência artificial integrada, cada documento passa a ganhar um rasto: sabe-se quem o criou, quem o alterou e porquê. O cumprimento das normas (sejam elas de regulação nacional, europeia ou específicas de cada país ou região) deixa de depender de verificações manuais e passa a estar inscrito na própria arquitetura do sistema. Isto significa que transparência e conformidade deixam de ser objetivos a alcançar e tornam-se propriedades naturais da informação.

Contudo, e mesmo com agentes cada vez mais rápidos e sistemas cada vez mais autónomos, as pessoas continuam a ser o que dá sentido à tecnologia. São elas que asseguram que a velocidade não substitui o discernimento e que a inteligência artificial continua a ser, no essencial, um reflexo (ainda que bastante mais ampliado) da nossa própria inteligência.

(*) Head of Quidgest_Academy e Product Manager na Quidgest