
Por Miguel Oliveira (*)
Durante séculos, medir produtividade era quase sempre somar duas coisas: as pessoas que trabalhavam e os recursos que tinham à sua disposição. Contavam-se horas de esforço humano e avaliava-se o capital físico, e era daí que se explicava o valor produzido. Esse modelo já não chega. A inteligência artificial trouxe um terceiro fator que é invisível, mas decisivo: o poder computacional disponível por cada trabalhador.
Até há poucos anos, falar de capital era falar em fábricas ou escritórios. Hoje mede-se também em horas de GPUs e acesso a modelos de linguagem (IA). Dois profissionais com a mesma formação podem entregar resultados radicalmente diferentes se apenas um tiver acesso a ferramentas de IA suportadas por capacidade de cálculo abundante. É a diferença entre passar dias a escrever e enviar uma carta em papel ou, com um clique, enviar um e-mail instantâneo para milhares de pessoas. A diferença não é apenas talento. É alavancagem digital.
Este poder computacional funciona como multiplicador cognitivo. Não se limita a acelerar tarefas já conhecidas, redefine a escala do que é possível fazer no mesmo espaço de tempo humano. Um professor deixa de estar limitado pela sua voz e pelo manual: com tutores virtuais pode personalizar o ensino a cada aluno em simultâneo. Um psicólogo já não precisa de semanas para rever literatura científica: com revisores digitais pode sintetizar centenas de artigos em horas, testando hipóteses de forma iterativa. Um programador júnior, antes dependente de anos de prática, pode escrever código funcional ao nível de um sénior com o apoio de copilotos baseados em IA.
Na prática, o poder computacional não é apenas uma ferramenta, é um amplificador da mente. Multiplica a atenção, expande a memória de trabalho, acelera a aprendizagem e encurta a curva de experiência. Cada hora de trabalho humano passa a produzir múltiplos de output, mais hipóteses geradas, mais cenários simulados, mais decisões fundamentadas. Estudos mostram que agentes de call center aumentaram em 13% a produtividade com IA, e que programadores concluíram tarefas quase 60% mais rápido com copilotos digitais. O impacto é ainda mais visível nos menos experientes, que saltam rapidamente para patamares de desempenho que antes exigiam anos de prática.
O problema é que este novo capital não está distribuído de forma equitativa. O acesso a supercomputadores, clouds e grandes modelos de linguagem concentra-se em poucas empresas e países. O resultado é um fosso crescente: de um lado, profissionais aumentados pela IA; do outro, trabalhadores em défice digital, condenados a uma produtividade marginal. Para agravar, os sistemas educativos continuam presos a conceitos com mais de 100 anos — avaliando horas de estudo e memorização — quando o verdadeiro fator diferenciador já depende da capacidade de trabalhar com estas novas infraestruturas digitais.
A questão é tanto técnica como estrutural: tratamos o poder computacional como luxo ou como infraestrutura básica. Se o deixarmos restrito a grandes empresas e a alguns países, será como ter eletricidade apenas em certos bairros no século XX. A consequência é previsível: desigualdade na produtividade, nos salários e nas oportunidades. Profissionais com acesso a ferramentas possantes produzirão mais e melhor, enquanto os restantes ficarão constrangidos a um papel secundário.
Mas se encararmos o poder computacional como infraestrutura pública, o efeito pode ser transformador. Tal como estradas e pontes permitiram que regiões inteiras participassem na economia, centros de dados acessíveis e plataformas de IA partilhadas podem elevar setores cruciais: professores com acesso a tutores digitais personalizados, psicólogos com revisores automáticos que ampliam o alcance da investigação, médicos com sistemas de apoio ao diagnóstico em português de Portugal, administrações públicas a processar em dias aquilo que demorava meses. Democratizar a capacidade de cálculo/computação não é só uma questão de inovação, é uma condição de justiça social e de coesão económica.
Contudo, infraestrutura por si só não basta. Sem literacia em IA, mesmo o melhor poder computacional fica subutilizado. É preciso capacitar trabalhadores para saber delegar, validar resultados e compreender os limites das ferramentas. Tal como a eletrificação exigiu engenheiros, técnicos e cidadãos capazes de usar a energia de forma segura e produtiva, também esta nova infraestrutura digital precisa de um investimento nestas competências distribuídas. O investimento em literacia em IA será o verdadeiro desbloqueador do potencial, garante que a tecnologia multiplica capacidades em vez de criar dependências cegas.
A nova função de produção cabe numa linha simples:
Produtividade = Trabalho humano × (Competências + Poder computacional disponível)
A fórmula é clara, a execução não. Exige governação técnica, desenho organizacional e ciência psicológica aplicada. O poder computacional amplia o que já somos: quando o objetivo é claro e os limites são bem definidos, multiplica o valor gerado, quando são vagos ou mal supervisionados, multiplica ruído.
O futuro da produtividade não se decidirá apenas por salários ou horas de esforço. Vai depender de quem tiver acesso a este novo multiplicador cognitivo e, sobretudo, de como o souber usar. A tecnologia multiplica capacidades, mas temos de garantir que esse poder não se traduz em alienação ou desigualdade. Cabe-nos redesenhar o trabalho para que a motivação se mantenha, as competências humanas não se atrofiem e o sentido de dignidade seja preservado. Só assim este multiplicador deixará de ser risco de divisão e passará a ser motor de progresso partilhado. Esta é também a forma de combater a narrativa doomer — a visão fatalista de que a IA nos substituirá inevitavelmente — mostrando, pelo contrário, como pode ser usada para aumentar o nosso alcance, acelerar aprendizagens e reforçar capacidades que permanecem exclusivamente humanas.
(*) Coordenador do Programa PsicologIA na Transformação Social da Ordem dos Psicólogos Portugueses
Pergunta do Dia
Em destaque
-
Multimédia
Robots, carros ultra-compactos e IA em tudo: Os melhores (e mais estranhos) gadgets da IFA 2025 -
App do dia
Call of Dragons incentiva a capturar criaturas selvagens e a treiná-las para adicioná-las ao exército -
Site do dia
Desenhe um GIF animado personalizado “frame a frame” -
How to TEK
Microsoft corta acesso às passwords no Authenticator em agosto. Veja como exportar os seus dados
Comentários