
Por Paulo Fonseca (*)
Numa altura em que Portugal reafirma a sua ambição de liderar a transformação digital e de colocar o país na pole position dos países mais avançados tecnologicamente, a Comissão Europeia lança uma consulta pública sobre a proteção digital dos consumidores, no que designamos como o “Digital Fairness Act”.
A transformação digital tem sido uma das narrativas políticas e económicas mais importantes do nosso tempo, mas tem sido, também, o palco de uma realidade irrefutável: os consumidores continuam à margem da discussão sobre o futuro digital. Pior do que isso – estão a ser deixados para trás.
Na verdade, os consumidores continuam a navegar sem vela ou navio num ecossistema onde a sua liberdade está profundamente enviesada ou, por vezes, nem sequer existe. Websites que induzem consentimentos artificiais, cancelamento de serviços dificultados, produtos empurrados para o cesto de compras e recolha abusiva e intrusiva de dados são práticas cada vez mais comuns na internet, o que a torna num terreno fértil para a erosão dos direitos dos consumidores. Não são só os utilizadores com baixa literacia digital que sofrem – mesmo os nativos sentem-se frequentemente impotentes perante um sistema que parece desenhado para os confundir.
Um dos aspetos que mais preocupam a DECO prende-se com o recurso a estratégias de personalização baseadas em dados comportamentais e classificações sociais que, sob a promessa de conveniência, escondem formas subtis de discriminação. Desde a reserva no website de um hotel à criação de uma conta numa rede social, a forma como as empresas apresentam os preços, os produtos ou até mesmo as sugestões que nos enviam variam consoante os nossos perfis, os nossos padrões de navegação, o nosso comportamento social e a nossa própria vulnerabilidade. Estas práticas levantam cada vez mais dúvidas sobre a equidade do mercado digital e o respeito pelos direitos dos consumidores. Não podemos controlar o que não conhecemos.
Acresce a isto a exploração deliberada de práticas que exploram o nosso comportamento aditivo, maximizando o tempo que passamos nas plataformas, promovendo dependência e reduzindo a nossa autonomia enquanto consumidores. Tempo é dinheiro e muitas empresas desenham as suas aplicações com o objetivo de gerar um engagement contínuo. Esta lógica não tem em conta o bem-estar dos consumidores – pelo contrário, alimenta-se dele.
Fala-se muito na Inteligência Artificial (IA), mas pouco se discute sobre a forma como os consumidores se podem relacionar com a IA. Os desafios são inúmeros: opacidade de algoritmos, fraca fidedignidade dos modelos de IA generativa, exclusão de responsabilidades e riscos graves de exposição sistémica de dados a cibercriminosos colocam os consumidores numa posição de fragilidade sem precedentes. E não esqueçamos que uma das características da economia digital é a sua capacidade de interligação e interdependência, sobretudo a nível da automação e da segurança em linha. Uma simples pulseira de fitness ou um eletrodoméstico podem acarretar riscos significativos em matéria de cibersegurança, privacidade e qualidade.
O futuro é incerto, sem dúvida, porém não é tão negro como parece. Os consumidores estão dispostos a embarcar no desafio digital e, na verdade, muito já foi feito em Bruxelas. A Europa tem sido pioneira na forma como abraçou estes desafios, contudo é preciso coerência e consistência nos instrumentos normativos.
É neste contexto que o Digital Fairness Act - cuja consulta pública termina em outubro – deve ser pensado: não como mais uma peça legislativa num puzzle tecnológico, mas como um instrumento inspirador e transformador da economia. É preciso coragem política e ambição normativa, evitando os riscos de desregulação e não cedendo às pressões das economias que albergam as grandes empresas tecnológicas. É aqui que Portugal deve liderar, repensando a governança da economia digital numa lógica de igualdade, acessibilidade e justiça.
Portugal deve garantir que a liderança digital é feita com os consumidores e não à sua custa. Não existem solucionismos tecnológicos. Desengane-se quem pensa que o mercado digital é neutro e infalível. A proteção digital dos consumidores exige uma abordagem forte, coerente e centrada nos direitos humanos. Para já, o Digital Fairness Act parece ser um passo na direção certa, mas será inútil se não for acompanhado de uma vontade política de corrigir as assimetrias do mercado e de restaurar a confiança digital dos consumidores que, nos dias de hoje, parece perdida.
(*) Assessor Estratégico e de Relações Institucionais da DECO
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