No final deste ano, o mercado gerado pela Indústria 4.0 deve valer, a nível global, perto de 110 mil milhões de dólares. Em 2026 terá saltado até aos 220 mil milhões, crescendo a um ritmo de 16,5% ao ano. Para isso vai contribuir o investimento crescente em áreas tecnológicas que estão a transformar o chão de fábrica e tudo o que se liga a ele, numa extensa cadeia de valor que foi posta à prova com a pandemia.
A procura de processos de fabrico mais eficientes, rentáveis e sustentáveis fez crescer a aposta em soluções de IoT, sistemas de automação ou tecnologias inovadoras como a impressão aditiva (3D), destaca o estudo Global Industry Analysts, sublinhando ainda o interesse cada vez maior das empresas destes sectores em explorar e tirar partido dos dados que ambientes conectados e sensorizados para melhorar a eficiência, fazer previsões e evitar paragens e atrasos na produção.
Só o segmento de IoT deve valer 68,2 mil milhões de dólares em 2026, calcula-se, a crescer quase 18% ao ano até lá. As soluções de manufatura aditiva 33 mil milhões, a crescer a uma taxa idêntica, apurou a mesma pesquisa, que ouviu quase 50 mil executivos em fevereiro deste ano.
E em Portugal, qual é o momento e quais são as prioridades? Duarte Filipe, da Axians, acredita que a previsão do último Futurescape da IDC deixa algumas pistas. Segundo o estudo, apresentado já este ano, metade de todo o investimento em TI a ser feito em Portugal até 2025 vai estar orientado para a inovação e transformação digital.
É “sintomático de que ainda existe uma jornada a cumprir no que diz respeito às empresas nacionais, nomeadamente as empresas de cariz industrial”, afirma Duarte Filipe, da Axians
O business development manager & sales specialist da Axians admite que as empresas portuguesas continuam a ter dificuldade em estabelecer planos concretos para implementar a transformação digital e, por conseguinte, em tirar partido das tecnologias e possibilidades que a Indústria 4.0 traz consigo. “Não porque as tecnologias não estejam já maduras ou com um posicionamento ao nível de custo suficientemente atrativo e democratizado, mas porque continuamos a evidenciar uma grande iliteracia digital nas organizações, o que coloca desde logo importantes barreiras à compreensão e visão das mais valias e potencial destes processos de transformação”, refere.
Microempresas são 71% da indústria transformadora
Isto não significa que os exemplos de boas práticas e projetos inovadores não existam. Existem e são cada vez mais e nas mais diversas áreas, como referem todos os que colaboraram para este artigo. No entanto, o facto de o tecido industrial ser composto maioritariamente por PMEs, “que acabam por ser mais cautelosas e dependentes de incentivos e estímulos externos para a realização de investimentos”, tem tido o seu peso no ritmo de modernização da indústria, como admite Duarte Filipe.
Na indústria transformadora, por exemplo, os dados de 2020 do Banco de Portugal mostram que em Portugal existiam 42.202 empresas, responsáveis por uma faturação de quase 86 mil milhões de euros. Mais de 71% eram microempresas, 22% pequenas e 5,5% médias empresas.
Nesta área, as grandes organizações representam menos de 1% do tecido empresarial, embora assegurando mais de metade da faturação do sector. Os mesmos dados mostravam que quase 57% das empresas eram de baixa tecnologia.
Como aponta Tiago Sacchetti, diretor da Bosch Industry Consulting em Portugal e Espanha, a dimensão média da maior parte das empresas industriais em Portugal é desproporcionada face à média europeia, o que acaba por “multiplicar as dificuldades na criação e obtenção de resultados i4.0”.
“A solução para este problema passa, hoje em dia, pela utilização de tecnologias disponíveis na prateleira. Isto é, para as pequenas empresas faz mais sentido utilizar sistemas já existentes, eventualmente adaptando processos, do que criar soluções à medida cujos custos de criação e principalmente de manutenção seriam provavelmente incomportáveis”, sublinha Tiago Sacchetti
O responsável da divisão de consultoria da Bosch também identifica outra dificuldade relevante nos processos de transformação digital da indústria: “de uma forma geral, existe um problema logo no primeiro passo que é a definição do objetivo da transformação”. Sendo a I4.0 um conceito com muitas definições e abordagens possíveis torna-se difícil para as empresas definirem de uma forma objetiva uma visão para a digitalização das suas operações. “Há quem salte este passo e defina logo uma coleção de casos de uso. Esta aproximação é sem dúvida melhor do que ficar parado à espera da visão perfeita, mas por outro lado, também sabemos que a existência de uma visão digital de operações potencia melhores decisões estratégicas e aumenta a velocidade de adoção de tecnologias i4.0”.
Automação e IoT ganham terreno
Mas também há boas notícias. Na perspetiva de quem comercializa e integra soluções de automação industrial, percebe-se que a Indústria 4.0 é um tema que merece cada vez maior atenção e importância por parte das empresas portuguesas. Do amplo universo de áreas que o conceito engloba, João Breda destaca a procura de soluções de visão artificial, para sistemas de controlo de qualidade e validação de processo em linha ou a robótica, para otimização e modernização do processo produtivo, nomeadamente através da robótica móvel - particularmente relevante face à escassez de mão-de-obra.
O administrador da Bresimar também destaca as “soluções de motion control, com tecnologia inovadora para sistemas de automação industrial e máquinas especiais, que permitem o aumento de produção de forma fácil e segura”, ou a procura crescente de soluções de sensorização em chão de fábrica que promovem maior conhecimento e interligação entre humano e máquina, com dados em tempo real.
Sem poder revelar os nomes dos clientes, a Bresimar tem vários exemplos de projetos implementados que concretizam apostas nestas áreas. Entre eles, a aplicação de sistemas de controlo e simulação de injeção na indústria de moldes; a implementação de visão artificial numa linha de produção para validação 360º do invólucro e rotulagem; o desenvolvimento de um sistema sem fios para monitorização e registo automático do processo de compostagem; a utilização de robótica móvel integrada para otimização da manipulação de materiais em chão de fábrica; ou a concretização de um sistema robotizado de montagem e teste de sensores, numa empresa da indústria.
Também a SAP começa a identificar uma mudança de mentalidades nas direções industriais, que se tem traduzido numa forma diferente de olhar para o provisionamento de matérias-primas, previsões de vendas ou visibilidade das operações. A “ciência do saber da experiência” começa a dar lugar à vontade de olhar para a “ciência da análise de dados” e à tentativa de introduzir a automação nas operações de negócio. “Se, antes, muita da informação industrial residia em silos de informação, agora, as empresas aliam a estratégia de recolha de dados com as operações de negócio”, destaca Tiago Fernandes, senior presales specialist, dando o exemplo da ligação entre a previsão de vendas e a disponibilidade das máquinas em período de manutenção.
Sustentabilidade transformou-se num motor de inovação
No universo de atuação da gigante alemã do software, os esforços de transformação digital da indústria estão divididos em duas principais frentes: “a indústria discreta tem centrado muita da sua alteração cultural ao nível dos processos de planeamento operacional das linhas de produção, com um grande enfoque na otimização e sequenciamento das ordens de produção, de forma a encurtar a resposta aos lead times”.
As empresas da indústria de processo, “estão mais focadas em garantir a disponibilidade dos equipamentos, com a introdução de tecnologia preditiva e de simulação, no sentido de garantirem a produção contínua dos seus produtos, sem quaisquer quebras na cadeia de abastecimento”, refere Tiago Fernandes.
Transversalmente, a SAP reconhece que há uma preocupação crescente da generalidade das empresas com o cumprimento dos indicadores de sustentabilidade ESG. Nas empresas de capital intensivo, como a indústria de pasta e papel, petroquímica, indústria cimenteira e indústria alimentar, diz que isso tem-se refletido num esforço para adaptar processos extremamente poluentes em processos cada vez mais sustentáveis.
A SAP admite, no entanto, que a maior parte dos investimento em TI da indústria está ainda concentrado nas tecnologias de front office, nomeadamente nas que estão ligadas ao e-Commerce, ainda que estejam já também a ser dados alguns passos no que toca à integração destes com os processos do backoffice, à procura de garantir uma melhor experiência de cliente.
“Ao nível industrial começa a haver uma preocupação em ligar os processos de automação industrial aos processos de negócio, de forma a otimizar as atividades de shopfloor, rastreabilidade de produto, qualidade, manutenção e gestão de armazéns”, acrescenta Tiago Fernandes.
No terreno, em Portugal, a SAP tem alguns projetos que confirmam estas tendências. Os nomes dos clientes ficam por revelar, porque os projetos ainda estão em fase de implementação, mas a empresa sempre vai dizendo que está a trabalhar com um cliente na área da cerâmica para integrar todos os sistemas de chão de fábrica com o ERP atual e alcançar uma visibilidade total das operações produtivas. Com uma empresa da área dos moldes, trabalha num projeto que pretende fazer uma transformação completa da organização e da cadeia produtiva. Os cálculos de base dizem que os ganhos para a atividade operacional devem atingir 10 a 15%.
A Axians identifica ainda como principais áreas de crescimento, no que se refere ao investimento da indústria em TI, tudo o que tem a ver com redes - network, incontornável para “extrair e disseminar toda a informação gerada no chão de fábrica” e as aplicações em cloud, à medida que os benefícios de correr aplicações de negócio sem o ónus de investimento em hardware ou software se tornam evidentes de forma generalizada. A consultora refere ainda que a segurança começa também já a revelar-se uma preocupação, sobretudo depois dos ataques informáticos que atingiram empresas noutros sectores, fazendo soar alarmes por toda a economia.
“Temos assistido de forma positiva, ao incremental interesse pela realização de Assessments – Avaliações aos temas da segurança, o que demonstra que esta preocupação já passou para o campo da ação e que se estão a cumprir os passos necessários para, primeiro compreender o cenário atual das organizações, as suas vulnerabilidades e oportunidades de melhoria e só depois se passar à ação, ao investimento”, refere Duarte Filipe.
Segurança: uma preocupação de sempre com (muitos e importantes) novos contornos
Os desafios a este nível, como em qualquer indústria, são muitos e cada vez mais, mas aqui acresce o facto de boa parte serem também novos, o que acaba por trazer mais alguns elementos para a equação.
Bruno Morrison, partner e offensive security services director da Integrity compara o trajeto que está a ser feito na indústria com o que já fizemos no mercado de consumo, quando começamos a ligar tudo o que são dispositivos entre si. As consequências são semelhantes, mas com nuances, já que o cenário é muito mais complexo que o de uma casa e o risco também é maior. Na sua opinião, o maior perigo está no facto de haver ainda “poucas preocupações com a segurança no desenvolvimento deste tipo de soluções, desconhecimento dos novos riscos introduzidos e, no caso específico do “smart manufacturing”, falta de orientações e normas que enderecem esta nova realidade”.
A digitalização acaba por expor as organizações a novos riscos que antes não existiam, eram mais limitados ou com os quais não estavam habituadas a lidar, situação agravada também pela velocidade a que a indústria se move, porque a concorrência e os consumidores assim o exigem. À medida que a automação e a sensorização chegam aos equipamentos industriais e a conectividade permite potenciar essa digitalização, ligando tecnologias operacionais e tecnologias de informação, abre-se um mundo de oportunidades e uma caixa de pandora.
“Tornar todo um ambiente que era, e em muitos casos ainda é tipicamente “isolado” do resto do mundo e, como tal menos exposto e menos acessível a tentativas de ataque, num ambiente hiperconectado e ligado a parceiros vai acarretar “uma completa transformação das ameaças”, que deixam de estar limitadas às consequências de um acesso ao espaço físico da empresa, para passarem a poder vir de qualquer lugar, ou de qualquer parceiro.
“Se olharmos para casos extremos como o do Stuxnet, em que foi possível infetar com malware um sistema isolado de uma central nuclear no Irão, podemos facilmente perceber que toda a abordagem de interconexão de sistemas industriais/fabris com outros ambientes poderão potenciar muito mais facilmente a propagação de ameaças desde o típico ransomware a outro tipo de ações de sabotagem”, lembra Bruno Morisson.
Um dos grandes constrangimentos na resposta aos desafios que a segurança traz à digitalização está nos recursos humanos e na necessidade de pessoas qualificadas para lidar com esta nova realidade, identificar as novas ameaças e gerir os riscos inerentes.
“Na realidade o conceito de Indústria 4.0 contempla uma grande variedade de tecnologias diferentes, desde o IT tradicional, às TO (tecnologias operacionais), sistemas embutidos, entre outras, tornando ainda mais desafiante encontrar especialistas com o conhecimento necessário”, acrescenta o especialista da Integrity, lembrando ainda mais um aspeto. Também não ajuda o facto de não existirem standards verdadeiramente universais para as tecnologias que estão a promover estes ambientes hiperconectados, ou os desafios que ainda permanecem à interoperabilidade das diversas plataformas ou soluções. A normalização dos diversos componentes das soluções 4.0 vai ser fundamental para diminuir o nível de risco.
Para ajudar nestas e noutras fragilidades que a indústria enfrenta para vencer esta nova revolução industrial têm chegado à economia vários fundos e programas de apoio. Em 2017 foi lançado o Programa Indústria 4.0 com 64 medidas que cobriam vários eixos, da capacitação de pessoas à cooperação tecnológica, passando pela criação da startup Indústria 4.0, financiamento, apoio ao investimento, internacionalização.
Dois anos depois, a iniciativa teve um reforço, na mesma altura em que o Governo assegurava que 95% das medidas previstas tinham sido executadas, abrangendo mais de 24 mil empresas e 550 mil trabalhadores. Nesta segunda fase, o plano era mobilizar 600 milhões de euros em investimento, público e privado, envolver 20 mil empresas e 200 mil trabalhadores e financiar mais de 350 projetos. Não foi possível obter do Ministério da Economia informação sobre o impacto concreto no terreno das duas iniciativas.
No Plano de Recuperação e Resiliência, a prioridade da modernização da indústria, importância de explorar novas oportunidades (com novas técnicas de produção, processos ou materiais) e alinhar o sector com as metas da agenda verde são os grandes tópicos. Refletem-se, por exemplo, nas agendas mobilizadoras, onde 35% das candidaturas aprovadas se referem a projetos da área industrial e das tecnologias de produção. Noutros instrumentos, há mais fundos para ajudar a encaminhar as empresas para a dupla transição verde e digital e melhorar a capacidade de resiliência, instrumentos que se espera venham a ter o seu impacto.
Este artigo integra o Especial: Indústria 4.0: Como estão as empresas portuguesas a abraçar a nova revolução no sector
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