As tecnologias que ajudam a escrever a história da indústria 4.0 são diversas e as áreas de intervenção desta transformação profunda de processos de negócio também. Um dos domínios onde os progressos são maiores - tanto no que se refere à evolução da tecnologia, como à sua adoção em ambientes de fábrica - é na área da automação e da robótica. É assim um pouco por todo o mundo e Portugal não é exceção.
“A evolução que a indústria portuguesa tem alcançado nos últimos anos é notável e absolutamente evidente. Hoje, as empresas dispõem de métodos de produção muito mais tecnológicos, assistindo-se a uma verdadeira reformulação digital em setores tradicionais da nossa economia”, admite João Breda, administrador da Bresimar.
O responsável da Bresimar reconhece que, para a maioria das empresas, o caminho faz-se progressivamente, com uma “reformulação gradual dos seus processos, respondendo a carências específicas que sentem na sua atividade”, motivadas pelas exigência dos clientes, pela evolução da própria concorrência, ou pela escassez de mão-de-obra.
“É, contudo, notório que a Indústria 4.0 deixou de ser um conceito abstrato, passando a ser interiorizada como uma metodologia e conjunto de ferramentas que visam acrescentar valor, obter dados altamente relevantes, otimizar processos e promover a competitividade de toda a organização”, assegura o responsável da empresa de Aveiro, que está no mercado há mais de 30 anos.
A Bresimar identifica como mais procuradas, na sua área de atuação, as soluções de visão artificial para sistemas de controlo de qualidade e validação de processo em linha, as soluções de robótica para otimizar e modernizar o processo produtivo - com destaque para a robótica móvel, “particularmente relevantes face à escassez de mão-de-obra” e as soluções de motion control, para sistemas de automação industrial e máquinas especiais, que ajudam a aumentar a produção.
Em destaque, garante João Breda, tem estado também o IoT e as soluções que permitem sensorizar o chão de fábrica, a traduzir uma valorização crescente dos dados que dali podem extrair-se, seja por questões de segurança, ou pela intenção de adotar metodologias de manutenção preventivas. “A modernização do parque industrial e a centralização da gestão de infraestruturas deslocadas, é também particularmente relevante para organizações de grande dimensão e com várias unidades”, acrescenta o responsável.
MES, ou o caminho para conhecer e controlar processos de produção
A possibilidade de automatizar tarefas e recolher dados de cada ativo e processo numa atividade industrial traz ganhos óbvios, que são ainda maiores quando essa informação fica disponível em tempo real e pode ser integrada e usada para diferentes fins. É neste contexto que os MES - Manufacturing Execution Systems se tornaram outro ponto incontornável na digitalização da indústria. Um MES é um “software orientado para a produção que gere, monitoriza e sincroniza a execução de processos físicos, em tempo real, envolvidos na transformação de matérias-primas em semiacabados e/ou acabados”, explica David Tavares, CEO da Kaizen Tech. São estes sistemas que coordenam a execução de ordens de trabalho, programando a produção, podendo estar também ligados a sistemas de nível empresarial como um ERP. Também fornecem feedback sobre o desempenho dos processos onde intervêm, permitem a rastreabilidade de componentes e materiais ou a integração com o histórico do processo, sempre que há necessidade disso.
Não pressupõe que a empresa esteja num patamar de digitalização já avançado, uma vez que o software pode ser usado recorrendo só a inputs manuais inseridos pelos operadores, mas a evolução tecnológica dos últimos anos veio permitir a comunicação com as máquinas e a ligação à automação, ou o uso de tecnologia operacional (OT ou IOT), que abrem caminho a benefícios ainda maiores, admite David Tavares.
A Kaizen Tech ajuda as empresas a encontrar e pôr em prática a receita certa para tirar o melhor partido de um MES. A empresa acabou de se apresentar ao mercado e nasce de uma joint-venture entre o Kaizen Institute e a Corticeira Amorim, que resulta precisamente da identificação de uma oportunidade de mercado, quando a Corticeira quis implementar um MES e não encontrou o acompanhamento que precisava no mercado. Juntou-se o conhecimento da empresa às metodologias do Kaizen Institute e nasceu a nova consultora.
O foco do negócio passa por entender os processos industriais, otimizar as estruturas de dados adequando-as às necessidades de um sistema MES e sugerir a melhor forma de comunicação com o chão-de-fábrica, estudando a automação das máquinas dos clientes, para conseguir os resultados pretendidos.
Entre as decisões a tomar no desenho de uma solução final nesta área estão a identificação dos KPIs mais importantes para a empresa; o tipo de equipamentos a usar (PCs ou tablets, impressoras ou scanners, etiquetas de códigos de barras ou RFID, etc); necessidade, ou não, de um controlo de qualidade auxiliado por visão artificial com introdução automática de registos no sistema.
Ou ainda, aspectos relacionados com a segurança, armazenamento dos dados, dimensionamento e instalação dos servidores, solução de rede ou comunicações mais adequadas para cada situação.
“Muitas vezes, na ausência de autómatos ou impossibilidade de conexão com os mesmos, a solução poderá passar pela sua atualização, normalmente custosa, ou pela adição de novos sensores. Em qualquer dos casos, é necessário converter e interpretar estes novos sinais tornando-os em inputs para o sistema”, explica ainda David Tavares, convicto que este é um caminho que todas as empresas vão ter de acabar por fazer.
“Para ser sincero, e na minha opinião, as empresas que não iniciarem este projeto de transformação digital terão muita dificuldade em responder às exigências do mercado nos próximos anos porque assegurar a rastreabilidade dos produtos, controlar os processos de fabrico e utilizar dados para melhoria de processos serão necessidades de todas as indústrias e não apenas de algumas, tal como acontece hoje”.
Gestão da cadeia de valor: simplificar e integrar são máximas que vieram para ficar
Enquanto a produção na fábrica se vai modernizando, cresce também o investimento numa gestão mais eficiente, integrada e tão automatizada quanto possível do resto da cadeia de valor, desde a ligação aos fornecedores até à entrega do produto no cliente. É esse o campo de ação da Generix, que elege a automação de processos tradicionalmente manuais dentro dos armazéns e a otimização dos fluxos de transporte (distribuição e last mile) como os dois grandes focos de investimento das empresas neste domínio.
“O impacto é enorme, pois permite libertar recursos humanos para tarefas de maior valor acrescentado, reduzir erros, melhorar a produtividade e, consequentemente, reduzir o custo logístico total, libertando margem crítica para fazer face ao aumento do custo das matérias-primas, uma realidade da conjuntura sociopolítica atual”, como refere Pedro Gordo, supply chain business manager no Generix Group.
O responsável acrescenta, no entanto, que em Portugal, os progressos nesta área não vão ainda tão longe quanto poderiam ir porque a maturidade dos projetos em geral é baixa, “devido ao crónico problema de falta de escala e à difícil equação entre o investimento e o seu retorno”.
Mas há poucas dúvidas em relação à necessidade de transformação também nesta área e o caminho aponta para cadeias logísticas cada vez mais curtas, inteligentes e integradas. O “paradigma da demand chain com foco no consumidor veio para ficar, o que associado a fatores de sustentabilidade e responsabilidade social serão os catalisadores da evolução e mudança tecnológica”, refere o responsável.
Nas soluções que a empresa comercializa nesta área, que têm também elas evoluído para integrar tecnologias de IA, como o machine learning, é possível identificar alguns exemplos que ajudam a concretizar impactos. A Generix garante que a utilização de um TMS – Sistema de Gestão de Transportes e otimização de rotas para realidades complexas de distribuição conduz hoje a ganhos globais entre 7 e 25% do budget anual de transportes de uma empresa. O ganho é percentualmente maior em indústrias, comparativamente a retalhistas e operadores logísticos.
Na implementação de WMS – Sistema de Gestão de Armazéns na logística interna, a Generix assegura que tem clientes em Portugal que conseguem aumentos de produtividade de 20 a 30% nas operações, com a desmaterialização de todos os processos, massificação e industrialização tarefas e o envolvimento das várias partes interessadas da respetiva Supply Chain em projetos colaborativos globais.
Impressão 3D e IA podem levar moda para produção à medida
À medida que as soluções que implicam mudanças transversais a toda a organização fazem o seu caminho, entram em cena outras que, abordando temas mais específicos, não perdem potencial para ter um impacto gigantesco nas áreas a que se aplicam, ou podem vir a aplicar. É o caso da proposta do primeiro spin-off da XNFY Lab, como o nome indica, um laboratório que para já aponta ao retalho, numa parceria que junta a XnFinity e a Microsoft e que se apoia num cluster de I&D interno, que pode envolver outras startups e retalhistas, para acelerar processos de inovação no retalho.
A primeira solução da XNFY Lab a “voar sozinha” chama-se Fashable AI e o seu impacto pode fazer eco vários passos antes de uma peça de roupa chegar ao cliente. “A nossa tecnologia de IA Fashable é capaz de gerar conteúdo original, com imagens realistas para a indústria da moda, sendo capaz de resolver muitas das atuais ineficiências da indústria e problemas reais, com um impacto positivo”, explica Orlando Fernandes, fundador e CEO da XnFinity.
Como? Os use cases já trabalhados exploram a utilização da tecnologia para planear a criação de coleções, ou mesmo promovê-las e vendê-las (como pre-orders) antes de serem enviadas para produção. Com a ajuda da IA, o cliente vê como lhe fica a peça, mesmo antes desta existir, uma opção que combate o desperdício e alinha oferta e procura.
Na base está tecnologia proprietária, assente no Microsoft Azure Machine Learning, “que permite trazer os superpoderes para as equipas de design e conteúdos das marcas, mostrando como IA pode funcionar de uma forma eticamente correta e mudando o atual status-quo da indústria”, defende Orlando Fernandes.
A XNFY Lab está já a trabalhar com oito marcas e influencers, maioritariamente da Europa. Um dos influencers vai lançar uma coleção usando a Fashable.ai sem fazer qualquer investimento inicial na sua produção ou em stock.
Noutra iniciativa, com o projeto português Sarque, dedicado à impressão de têxteis em 3D, foi criada uma tshirt com IA para utilizar no metaverso, que acabou por ganhar formato físico através de impressão 3D.
Não sendo previsível que a mão humana venha a desaparecer tão cedo de indústrias como o calçado ou o têxtil, o que este como outros exemplos acabam por mostrar é que o espaço para explorar novas soluções para problemas antigos é imenso.
“Na XNFY Lab vemos que a incorporação da manufatura aditiva, com a IA, tem um potencial enorme para uma visão de moda e indústria mais sustentável. Todo o conceito de descarregar um ficheiro e imprimir a nossa roupa começa a estar cada vez mais perto de um futuro próximo”, acredita Orlando Fernandes.
É certo que estes exemplos ainda estão mais posicionados no fim da cadeia de valor da moda, mas é fácil perceber o seu potencial quando partirem da fábrica e é isso que a XNFY Lab também quer ajudar a fazer. “No futuro a IA vai ser chave e vai fazer muito mais. No nosso caso estamos a preparar a nossa tech com mais inteligência, que poderá ser bastante útil também para outras áreas como Healthcare, Manufacturing, cybersecurity, metaverse, gaming, etc”.
Realidade aumentada entra na fábrica para apoiar tarefas do dia-a-dia
Mas para que as oportunidades da indústria 4.0 se materializem em todas as frentes também é preciso olhar para “lado humano da equação”, como lhe chama o CEO da Glartek, reconhecendo que a oportunidade de transformação da indústria em Portugal continua a ser grande. Muitas empresas continuam a depender de ferramentas obsoletas e de processos em papel no dia-a-dia e “as soluções que existem são principalmente orientadas para gestores de fábricas e não necessariamente trabalhadores de campo”, reconhece Bruno Duarte.
O responsável refere-se especificamente às soluções que podem contribuir para agilizar as tarefas de quem está na linha da frente, no chão de fábrica, como a realidade aumentada. “As pessoas consideram que é algo altamente tecnológico e de difícil implementação, mas hoje em dia é uma tecnologia ubíqua e que não depende de terceiros para ser implementada”, desmistifica.
Mesmo as empresas mais avançadas no processo de transformação digital, que já estão a adotar este tipo de soluções, fazem-no sobretudo com “ferramentas de gestão de trabalhos, o que acaba por ser insuficiente em áreas industriais, em que o ser humano continua a ser fundamental”, acredita Bruno Duarte. Mantém-se uma lacuna no que diz respeito a soluções tecnológicas que respondam a necessidades de produtividade, segurança, formação das equipas de campo, áreas onde a empresa de Leiria está a apostar.
Com clientes nos Estados Unidos, Japão ou França e uma aposta reforçada este ano na Alemanha e no Reino Unido, uma das soluções que a Glartek tem implementado na indústria chama-se Augmented & Connected Worker. Permite acabar com o papel usado para instruções de trabalho, checklists e controlo de tarefas no chão de fábrica, ou integrar dados que já existam de um MES ou ERP.
A informação passa a estar disponível a partir de dispositivos que suportem Realidade Aumentada e os trabalhadores ganham a possibilidade de executar tarefas sem necessidade de formações ou acompanhamento de especialistas, porque são conduzidos por guias de realidade aumentada com a informação que precisam. A mesma solução pode ser usada a partir de tablets ou smartphones, suporta assistência remota - quando quem está no terreno precisa da ajuda de um especialista, para além de permitir o registo de evidências ou a criação de analíticas e dashboards para otimizar processos e facilitar a tomada de decisões.
Os resultados no terreno têm-se traduzido em equipas que se tornaram mais autónomas, mais pequenas e mais preparadas para responder a diferentes tipos de questões, garante Bruno Duarte, que partilha alguns exemplos.
Na Roche, a Glartek aplicou a tecnologia à área da manutenção, para agilizar um processo que era extenso, complexo e exigia formação intensa dos colaboradores. Digitalizou-se o processo, criaram-se os guias de RA e as taxas de erro começaram a diminuir, ao mesmo tempo que a produtividade aumentou 3%.
Na Subaru, a tecnologia foi aplicada a uma processo de Kitting / Part Picking que era simples, mas a causa de grandes problemas de ergonomia, erro e produtividade. Com o suporte de Realidade Aumentada e sistemas de mãos-livres foi possível torná-lo rápido e eficiente.
No domínio da formação a tecnologia também tem sido aplicada com bons resultados. A REN já a usou para preparar as equipas que fazem inspeções de subestações. A Estée Lauder para acelerar a formação dos colaboradores, na preparação da linha de produção para outro produto.
“Em suma, os resultados alcançados pelos nossos clientes impactam três grandes áreas: formação, produtividade e segurança. Já conseguimos reduzir margens de erro para 0%, aumentar a eficiência das equipas, e reduzir o tempo de formação até 50%”, refere Bruno Duarte. “Estes resultados são mensuráveis em apenas alguns meses após a implementação da solução. O que demonstra que realmente não é tão complexo assim a adoção de novas tecnologias”, remata o responsável.
Este artigo integra o Especial: Indústria 4.0: Como estão as empresas portuguesas a abraçar a nova revolução no sector
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