No final de outubro Mark Zuckerberg assumia o nome da empresa que fundou e que iria tornar-se a maior rede social do mundo. Meta é o novo nome do Facebook, a empresa-mãe das diversas redes sociais do grupo (Instagram e WhatsApp). E Meta é um diminutivo de Metaverse, aquele que se diz ser o quebrar da quarta barreira entre o real e o virtual, o próximo passo evolutivo na comunicação e relação entre as pessoas.
O conceito até pode ser conotado como filosófico, mas o facto é que Mark Zuckerberg apenas extrapolou um conceito que está a ser trabalhado há anos por diferentes players, como o passo seguinte na realidade virtual. Provavelmente é muito mais fácil ver o filme Ready Player One de Steven Spielberg para compreender a génese do conceito. As pessoas deambulam entre o mundo real e virtual, onde este segundo começa a tomar o lugar do trabalho e ensino, mas também nas relações sociais online. Para quê fazer uma chamada de zoom ou enviar um SMS quando pode passear num mundo fictício, obtendo uma proximidade e imersão maiores entre os intervenientes.
O que o Meta fez com o seu anúncio foi expandir o conceito de metaverse a um público alargado, e como consequência, poupar tempo e recursos a outros players na explicação daquela que se afigura ser a próxima grande tendência tecnológica no futuro próximo. E foi por isso que durante a Web Summit, receber a notícia de que o lendário músico Jean-Michel Jarre iria também cocriar um mundo dentro do metaverso sa Sensorium Galaxy, já não causou tanto choque.
Ao longo da sua carreira, o compositor vendeu milhões de unidades de cada álbum lançado, batendo recordes sucessivos de audiência para os seus espetáculos, sendo listado frequentemente no livro do Guinness. O seu grande último feito foi o concerto realizado no dia 5 de janeiro a partir de um estúdio em Paris, mas transmitido online num cenário de realidade virtual inspirado no cenário da Catedral de Notre Dame. O espetáculo, que serviu de promoção ao seu novo álbum Welcome to the Other side, foi assistido por 75 milhões de pessoas, o que “ridiculariza” os seus registos anteriores, como os 3,5 milhões de pessoas em Moscovo, naquele que seria o seu quarto recorde batido.
E por isso não é difícil de perceber como a música eletrónica do compositor francês, aliado à imersão do som e imagem da realidade virtual, pretendem fazer para o seu conceito de metaverse. E foi para falar nele que trouxe Jean-Michel Jarre a Lisboa, para o Web Summit, numa parceria com a tecnológica Sensorium Galaxy.
Concertos virtuais impossíveis de recriar no mundo real
A empresa tem vindo a criar experiências de realidade virtual, tendo nos seus quadros especialistas ligados aos videojogos, tendo trabalhado em editoras como a Ubisoft, Electronic Arts e Activision, que estão a ajudar na criação do seu metaverso. O objetivo atual é criar mundos virtuais para artistas, para que criem novas experiências audiovisuais para a sua audiência, salientou Sasha Tityyanko, vice-CEO da empresa.
Para o conceituado compositor francês, a pandemia ajudou a mudar paradigmas na forma como se consomem os concertos e mostrou aos artistas diferentes caminhos para se manterem ativos e conectados ao seu público. Há quem faz concertos ao vivo transmitidos no YouTube, Twitch ou Facebook, mas Jean-Michel Jarre viu na realidade virtual aquela que pode ser a sua nova “casa”. E não se trata de replicar um dos seus concertos para o mundo virtual, semelhante ao que fez em janeiro, mas sim criar toda uma nova experiência, impossível de produzir nos palcos reais.
Para o músico, que já conta com diversos outros projetos em VR, o importante é ter a ambição de usar o conceito de metaverse não só para o negócio ou parar criar o próximo Instagram, numa referência aos planos do Meta; mas sim oferecer aos artistas formas alternativas de conexão com a sua audiência, através de IA e outras tecnologias cruciais para a realidade virtual.
Atualmente quando se fala de realidade virtual, a ideia que surge é que se trata de uma experiência isolada, metendo um headset para se afastar do mundo real. Mas ao integrar o contexto de inteligência artificial no campo da realidade virtual, os especialistas falam em evolução, de poder viver e experienciar os vários momentos com amigos e família. Mas ao mesmo tempo, os artistas podem explorar narrativas não lineares, mas em constante evolução, numa nova dimensão de entretenimento.
O uso do VR em toda a cinegrafia do espetáculo, o artista tanto pode estar no palco, como ficar em casa, que a experiência será semelhante. Uma vez que todos utilizam um avatar (uma representação virtual de cada pessoa), todos podem interagir no espaço online, independentemente do lugar do mundo onde estiverem. A IA pretende dar uma maior dimensão ao virtual, criando experiências únicas a cada concerto, mas sobretudo personalizadas e moldadas por cada fã.
“O que me interessa como artista é usar a técnica que tenho hoje para fazer as coisas para os meus próximos projetos, a partir do meu avatar. O meu avatar vai nascer daqui a um mês, portanto vou voltar a ser um bebé novamente."
A Sensorium Galaxy diz que já não se trata de assistir a concertos de forma passiva, mas a IA vai garantir que cada utilizar contribua para que esse espetáculo seja ainda mais imersivo e único. “A primeira vez que vê um espetáculo, e depois uma segunda, terceira, todas as experiências serão totalmente diferentes”. Parte do trabalho da empresa é criar a próxima geração de avatares digitais, um pouco como a startup portuguesa Didimo faz com os seus humanos digitais.
O “renascer” de Jean-Michel Jarre
Essa tecnologia de Avatares será aplicada ao próprio músico, que terá uma “personificação” de si a viver neste novo mundo virtual. Em entrevista ao SAPO TEK, Jean-Michel Jarre afirma que o seu metaverse será “work in progresso”, não via ser lançado de uma forma rápida. “O que me interessa como artista é usar a técnica que tenho hoje para fazer as coisas para os meus próximos projetos, a partir do meu avatar. O meu avatar vai nascer daqui a um mês, portanto vou voltar a ser um bebé novamente”, refere.
Tal como outros avatares, estes têm comportamentos únicos, mostrando as suas individualidades durante as conversações e interações. Essa individualidade estará presente na projeção virtual de Jean-Michel Jarre para interagir com a sua audiência. O plano da empresa é remover a “quarta parede” que impede os artistas de terem uma maior ligação aos seus fãs. E quando se assiste a um concerto, espera-se que a sua presença faça sentido e tenha significado.
Muitas pessoas não têm como viajar, seja por questões monetárias ou físicas para assistir aos concertos dados pelo mundo. No mundo virtual vai ser possível assistir a tudo, mas também haver interação entre o artista e a audiência, de forma imersiva. No entanto, ressalva que a realidade virtual não pretende substituir a sensação presencial e o próprio músico compara com a experiência de ir ao cinema ver um filme ou assistir em casa. No entanto, ver um filme, independentemente do lugar em que se assiste será sempre uma experiência passiva, mas num concerto música, toda a plateia terá uma participação ativa.
É por causa disso que para Jean-Michel Jarre, esta nova viragem é como se fosse o renascimento da sua carreira, representado pelo seu “bebé” avatar. Tem a certeza que os seus próximos espetáculos vão ser bem diferentes dos que deu antes da pandemia. “Vejo o meu futuro como um ser que cria experiências VR nos espetáculos ao vivo. E se no cinema 50% da experiência vem do som, segundo os realizadores Quentin Tarantino e Alfred Hitchcock, na música essa percentagem é maior.”
A Sensorium Galaxy promete uma experiência AAA nesta experiência de metaverse, criar espetáculos ao vivo dentro do mundo virtual, que não seriam possíveis de fazer na vida real. Até porque para o músico, se o metaverse e o VR se resumirem a uma experiência como o Instagram, não está interessado. Para si quer um mundo, com conteúdo, mas que seja espelhado de forma estilizada e não uma cópia foto-realística da realidade.
Para a empresa tecnológica, o VR é uma nova forma de arte: “será que devemos desafiar a gravidade? Ser invadidos por extraterrestres? Ou deverei assumir o papel do alien? Ver concertos sozinho ou acompanhado da família e amigos?” Estas são questões que a Sensorium Galaxy colocou na apresentação formal do projeto. A empresa quer colocar a sua tecnologia de VR nas mãos dos músicos, produtores ou contadores de histórias para criar novas experiências. E desde que se estabeleceu, nos últimos dois anos tem vindo a fazer colaborações com muitos artistas e mentes criativas, incluindo o reputado Cirque du Soleil. E agora é a vez de Jean-Michel Jarre, por ser considerado sempre um pioneiro tecnológico, provando isso com o seu concerto em realidade virtual no início do ano.
Há mais players a trabalhar no conceito de metaverse
Para o compositor, agora consegue-se fazer tudo, estando apenas limitado pela imaginação. Não existem barreiras físicas para criar os palcos com ambientes fantásticos, onde pode controlar a cor, a luz, poder reinventar-se durante o espetáculo, mudar a roupa. Essa é a sua visão para o seu projeto de metaverse, ainda que não tenha acesso a todas as ferramentas que idealizou. Mas uma coisa é certa, poderá criar espetáculos a partir da sua casa, da mesma forma como compõe músicas.
Por outro lado, porque razão vai criar uma story no Instagram ou responder de forma “oca” aos seus fãs com emojis ou pequenas respostas, quando pode criar uma sala e interagir diretamente com a audiência? Os próprios utilizadores vão tornar-se cocriadores das experiências. E os artistas passam a ser designados como AI-Ding Artists, versões digitais dos artistas. “A IA é uma ferramenta brutal que deve ser adotada, mas o VR não é um substituto da vida real, mas sim como um novo médium e um getaway para o metaverse. Na sua visão, os jovens estão a abandonar as redes sociais, que em breve se vão tornar espaços obsoletos. “As pessoas querem estar no centro das narrativas, e não como espetadores silenciosos”, explicando que o VR lhes vai dar voz e também a partilha de experiências.
Outras empresas estiveram também no Web Summit, ligadas à criação de experiências de realidade virtual, apanhadas pela recente avalanche de metaverse. A Shape Immersive tem vindo a democratizar a realidade virtual, a criar comunidades e ecossistemas para grandes empresas. A EndeavorRx está no mercado desde 2013, igualmente a criar sistemas de realidade virtual.
Apesar de confirmar que o metaverse tem vindo a ser bastante badalado desde a apresentação do Facebook, reforça que vale a pena tomar atenção ao que está a acontecer neste universo. Nesta palestra, também representada pela Sensorium Galaxy, é salientado que não se pretende replicar o mundo real em ambiente virtual. Esta pode ser uma oportunidade de repensar toda a comunicação para os negócios que ainda estão por surgir.
E para os especialistas, o metaverse é descrito como um ambiente computacional capaz de interagir com as coisas do mundo real, desde as chamadas telefónicas, as mensagens de texto ou voz.
A Sensorium Galaxy diz que estão a ser usadas técnicas chamadas de Generative IA, uma ferramenta poderosa, sobretudo para criadores. Vai ser possível criar avatares baseados numa fotografia ou um tópico. O uma imagem baseada num texto escrito criado pela IA. Dando o exemplo de um software de engenharia que consegue completar código fragmentado. A colocação de contexto nos objetos, para que a IA possa popular com assets de alta qualidade. “o VR não pode ser apenas objetos virtuais pendurados, precisa reagir ao utilizador, criar conteúdos e conceitos para tornar as respetivas experiências mais imersivas”, refere a empresa.
Para a representante da EndeavorRx, a realidade virtual ainda está naquilo que é chamado de 1.0, a versão “vanilla” da tecnologia. O futuro é ter as empresas e os utilizadores a terem uma experiência One-on-One, num novo formato de comunicação. E de dar a oportunidade aos seus utilizadores de serem quem quiserem ou estarem em qualquer lugar. E será isso melhor que viver na vida real? A Sensorium Galaxy diz que o metaverse é o próximo passo de evolução das redes sociais, de forma a tornarem-se mesmo sociais em novas experiências. Mas nunca para se trocar com a vida real. E defende o balanço, porque no final do dia, não quer que as pessoas se sintam mal com o mundo quando entraram no metaverse (numa alegação ao filme Ready Player One).
Para estas empresas, o Meta está a fazer um bom trabalho pelo que apresentou, mas a visão de Mark Zuckerberg não é muito interessante. Explicam que primeiro é preciso estabelecer um mundo com qualidade, algo que dizem ser impossível com os conteúdos criados pelos utilizadores, como apresentado pelo Meta. Só depois de apresentado é que se deve abrir, aos poucos, a porta aos criadores externos, que possam ajudar a criar assets para tornar a plataforma melhor.
Voltando a Jean-Michel Jarre, o músico explicou ao SAPO TEK que o seu avatar vai evoluir ao longo do tempo graças à IA, “mas ao mesmo tempo com as minhas escolhas”. Espera criar futuros projetos de música ou outros, em função desses elementos, num conceito novo. Explica ainda que o espetáculo de realidade virtual que deu no início do ano limitou-se a ser o próprio, equipado com sensores, a transmitir e a repetir os seus movimentos para o digital. “Mas a ideia deste projeto com a Sensorium Galaxy é ensinar o meu avatar a viver para além de mim”, ou seja, o músico pode estar “offline”, mas a sua representação virtual continuar a existir para além de si com a sua audiência.
“Até agora, e esse é a falha do Facebook, usamos a rede social como produtos, mas a ideia da realidade virtual é interagir com os fãs e a audiência. E a evolução da comunicação é trocar a interação com os fãs através do Instagram com a partilha de experiências em tempo real, como estamos agora a fazer nesta entrevista”. No entanto, como músico, o que lhe interessa para explorar toda a experiência sensorial através do som. “Não sei se sabes, mas o estéreo não existe na natureza, é uma mecânica artificial inventada em meados dos anos 1940/50, quando antes era tudo em mono”, explica o compositor, referindo que ao longo do tempo a tecnologia foi evoluindo para criar os efeitos direcionados em redor do utilizador.
Defende que a tecnologia de realidade virtual permite-lhes regressar à maneira natural de ouvir música. E o que o deixa excitado, é que deixa de ter de lidar com as afinações, dos ajustes dos canais da esquerda ou direita, mas sim dos elementos de 360º naturais. “Vai ser um game changer para os compositores musicais, pois vai criar uma nova geração de músicos, compositores e técnicos”.
O seu próximo projeto, que não está ligado à empresa de realidade virtual, centra-se num sistema de som em 360º, direcionado tanto a utilizadores que tenham um sistema de som em casa, como um simples headset de música bineural, para uma grande imersão.
Apesar de ter abraçado a realidade virtual, esta nunca irá substituir os contactos presenciais. Para si, trata-se de uma nova forma de expressão que quer abraçar.
Veja as imagens captadas pela equipa do SAPO TEK que dão uma perspetiva por dentro do Web Summit
Acompanhe o trabalho do SAPO TEK no Web Summit através do dossier dedicado à conferência.
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