É cada vez mais comum ter amigos, familiares ou colegas de trabalho a utilizarem um relógio que vai muito além da sua função tradicional de dar horas. O número de smartwatches colocados no mercado tem aumentado com o crescente interesse dos consumidores e a tecnologia que integram é cada vez mais variada, havendo já alguns lançamentos com leitores de eletrocardiograma (ECG) e medições dos níveis de stress. Mas quão fiável é esta tecnologia? O SAPO TEK conversou com vários especialistas para analisar a questão.

De acordo com dados divulgados no início de agosto pela Strategy Analytics o número de unidades de smartwatches no segundo trimestre de 2019 aumentou 44%, chegando a 12,3 milhões, quando no mesmo período de 2018 esse valor não chegava aos nove milhões. A Apple foi a marca que liderou esta lista, mas esta aposta tem sido frequente também em outras empresas como a Huawei, Samsung e ASUS, por exemplo.

Para além de serem apenas um dispositivo para os utilizadores comuns, os smartwatches também podem ser utilizados na prática clínica, mas para isso são necessárias aprovações de instituições competentes como a Food and Drug Administration (FDA), no caso dos Estados Unidos.

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Para Nuno Cortez, cardiologista no Hospital Santa Maria, este tipo de dispositivos "são geradores de informação clinicamente relevante que pode facilitar o diagnóstico de diversas arritmias muito frequentes e por vezes graves". Tanto o especialista como Eduardo Freire Rodrigues, co-fundador e CEO da startup que se dedica à análise da qualidade e treino avançado para hospitais UpHill, fazem referência ao caso da fibrilhação auricular, a arritmia crónica mais frequente de acordo com a Fundação Portuguesa de Cardiologia.

Segundo o cardiologista, a deteção precoce da arritmia pode conduzir a um tratamento atempado, “evitando acidentes vasculares cerebrais potencialmente devastadores e poupando vidas". À semelhança, Eduardo Freire Rodrigues destaca o facto de os smartwatches poderem ser vantajosos para "aumentar o índice de suspeita e determinadas patologias", como a fibrilhação auricular, através de um dispositivo à partida mais fácil de utilizar do que outros.

Uma tecnologia com os seus benefícios mas com possíveis riscos associados

Ambos os especialistas destacam o facto de este tipo de tecnologia poder nem sempre ser efetivamente favorável para a saúde dos utilizadores. “Obviamente que até uma tecnologia com imensas potencialidades poderá ter efeitos nefastos se for mal utilizada”, considera o cardiologista no Hospital Santa Maria que, ainda assim, acredita que “os benefícios potenciais destas tecnologias excedem amplamente os riscos de má utilização”.

Para Nuno Cortez o que é determinante para “um benefício clínico é o que é feito com essa informação”, enquanto o CEO da UpHill ressalva o facto de a excessiva medicalização do estilo de vida, onde se inclui constante monitorização de sinais vitais, não ser “custo/efetiva para toda a população e poder condicionar intervenções médicas desnecessárias e com potenciais efeitos adversos para a saúde”. “Aquilo que tem que existir é uma noção clara das limitações de fiabilidade destes dispositivos cujo objetivo não passa por substituir um profissional de saúde”, acrescenta o também professor assistente na NOVA Medical School, onde se formou em Medicina.

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Uma das apostas da Apple no seu smartwatch foi a app ECG que a empresa garante conseguir "registar o ritmo e os batimentos cardíacos através do sensor de ritmo cardíaco elétrico no Apple Watch Series 4 ou posterior e analisar os registos de fibrilhação auricular". Depois da Apple foram várias as marcas que seguiram o exemplo, como a ASUS, com o novo VivoWatch SP, que vem equipado com uma série de sensores para garantir a monitorização do estado de saúde, sono e atividade desportiva dos utilizadores. O relógio pode medir os sinais vitais, com ECG e PPG, mas também os níveis de stress e de oxigénio no sangue.

Quanto à precisão dos dispositivos medidos, quer a pulsação quer o oxigénio, Nuno Cortez refere que "a fiabilidade das medições depende criticamente da estabilidade dos sensores, sendo muito frequentes os erros de medição devidos a artefactos". Por isso, o cardiologista considera que mais "importante do que a medição isolada é o seu enquadramento no contexto clínico subjacente e no historial de medições prévias nesse indivíduo".

Na opinião de Eduardo Freire Rodrigues, a informação dada pelos smartwatches é um complemento à informação que os doentes partilham com os médicos em consulta, mas “esta monitorização contínua poderá só ser relevante para uma proporção de utentes com risco aumentado de doença cardiovascular”. E quanto ao ECG, o co-fundador da UpHill deixa bem claro que a ideia de que os relógios fazem um eletrocardiograma completo, no sentido em que conseguem detetar toda a atividade elétrica do coração, “pode ser um abuso de linguagem pois fazem-no só numa derivação”. Ainda assim, considera que estes relógios podem ser úteis ao alertar que o utilizador está com um padrão atípico e que poderá necessitar de observação ou intervenção médica.

O ECG tem sido integrado de duas formas fundamentais, de acordo com Nuno Cortez. Para além da utilização de dispositivos acopláveis ao telemóvel ou smartwaches que permitem registar o traçado electrocardiográfico, armazená-lo, analisá-lo mediante algoritmos automáticos ou enviá-lo para uma central de análise por clínicos, existem também apps que tiram partido de componentes usuais do smartphone ou smartwatches, nomeadamente da câmara fotográfica e da fonte de iluminação, para obter um registo da onda de pulso arterial. E, tal como explica Eduardo Freire Rodrigues, no caso do Apple Watch. tanto a entidade que regula todos os produtos de saúde FDA como a Associação Americana do Coração aprovaram as suas funcionalidades.

Neste âmbito, Carlos Cortez faz referência a um dispositivo comercializado e possível de ser incorporado na capa do telemóvel ou na bracelete do smartwatch, que produz um traçado de electrocardiograma. Para isso acontecer, o utilizador deve colocar um dedo da mão esquerda num dos eléctrodos e um dedo da mão direita no outro durante 30 segundos. Para demonstrar os resultados do AliveCor KardiaBand, o cardiologista faz referência a um estudo que incluiu uma amostra com 1.001 doentes com mais de 65 anos. A sensibilidade do dispositivo na deteção de fibrilhação auricular atingiu 98% e a sua especificidade foi de 97%, tendo aumentado a capacidade de deteção da arritmia nessa população.

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Já no que diz respeito aos métodos de deteção baseados apenas nos componentes usuais dos smartphone e smartwatch, o especialista considera que as potencialidades de massificação da sua utilização são enormes, atendendo nomeadamente ao seu baixo custo. Como Nuno Cortez explica, este tipo de métodos utiliza apenas a câmara fotográfica e a fonte de iluminação, sendo o único custo implicado a app, caso não seja gratuita. Enquanto cardiologista, Nuno Cortez assume que tem sido cada vez mais frequente os pacientes virem às consultas com um "histórico médico" através dos smartwatches, sobretudo nas consultas de Arritmologia.

O especialista adianta ainda que estas apps podem, já hoje, ser utilizadas em alguns casos na prática clínica, nomeadamente para documentar a onda de pulso durante os eventos sintomáticos, comprovar a existência de alteração da frequência cardíaca e fornecendo informação quanto à regularidade da onda de pulso.

Mas o CEO da UpHill refere que a precisão das medições dos smartwatches tem sido questionada até para a contagem de passos. Numa revisão sistemática os wearables demonstraram uma grande variabilidade na estimativa de passos, sobreestimando velocidades de caminhada lenta e subestimando velocidades de caminhada rápida. Adicionalmente, também sobreestimaram o tempo de sono profundo.

Para Eduardo Freire Rodrigues, além da variabilidade de medições face ao valor real mencionadas anteriormente, que põe em causa a precisão dos dispositivos, a sensibilidade e especificidade também são dois conceitos destacados pelo especialista. Os dois termos referem a capacidade de identificar pessoas sem doença detetada mas que na verdade estavam doentes e pessoas que foram detetadas com doença mas que não a tinham, respetivamente. “Poucos dispositivos têm a sua sensibilidade e especificidade estudadas sistematicamente e um só estudo pode ser insuficiente para caracterizar um dispositivo”, afirma.

Até que ponto é que os wearables podem ser utilizados na prática clínica?

O Hospital Cruz Vermelha (HCV) inaugurou em maio deste ano o Heart Center, um centro especializado em tratamentos cardiovasculares, aberto 24 horas por dia, 365 dias por ano, focando-se também na prevenção e no diagnóstico. Em entrevista ao SAPO TEK, o coordenador do Heart Center e cirurgião cardiotorácico explica que este centro teve como propósito “conjugar a tecnologia mais recente na prevenção, no tratamento e diagnóstico das doenças cardiovasculares”, através de uma equipa multidisciplinar composta por especialistas como cardiologistas e cirurgiões. Para isso, Luís Baquero afirma que o Heart Center conta com uma parceria com a Siemens durante um período de dez anos, com o objetivo de garantir no próprio centro a última geração de equipamentos de diagnóstico e tratamento.

Outra aposta deste centro do HCV passa pela possibilidade de acompanhamento dos doentes em casa, com recurso à telessaúde e a transmissão de dados, que permitem avaliar e acompanhar sinais como a pressão arterial, o peso ou as arritmias. Mas, e como explica o gestor de caso e de sistemas de informação do Heart Center, há uma razão para que alguns wearables ainda não sejam utilizados na prática clínica: a certificação como dispositivo médico.

Apesar de Pedro Sobreiro garantir que neste momento existem “tecnologias que avaliam sinais vitais, sobretudo no âmbito do desporto muito fidedignas”, não tendo essa certificação o seu uso na prática clínica torna-se muito complicado. O enfermeiro fala assim num “contrassenso”, uma vez que os profissionais de saúde se veem impossibilitados de recorrer a uma tecnologia que ainda não tem as devidas certificações. Segundo o especialista já começam a surgir alguns dispositivos regulamentados como o biobeat, mas há uma desvantagem: o seu custo elevado que dificulta a sua adoção.

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Neste sentido o que está a ser feito no Heart Center até agora é a monitorização remota do paciente, com um programa pós cirúrgico e outro relativo aos doentes crónicos com doença cardíaca, através de dispositivos mais tradicionais. O objetivo é que assim que as condições estejam favoráveis, ou seja, que existam mais dispositivos regulamentados e a preços acessíveis, se passe para uma fase em que a aposta resida em dispositivos simples e práticos, evitando ter de se recorrer a dispositivos tradicionais como a manga de pressão arterial.

Atualmente, e contando com a parceria da Linde Saúde, o centro aposta na monitorização através de dispositivos mais tradicionais mas devidamente certificados e que contam com uma transmissão Bluetooth, o que permite que os dados tratados pela empresa cheguem aos profissionais de saúde. Desta forma, pretende-se “atuar mais rapidamente e detetar de forma mais precoce possíveis situações de alerta”.

Numa altura em que a inteligência articial (IA) e a telessaúde estão a ser cada vez mais postas em prática em prol do doente e do próprio trabalho do profissional de saúde já 47% das instituições de saúde nacional têm projetos de IA implementados ou em fase piloto e 75% das instituições de saúde, 87% se forem consideradas apenas entidades do Serviço Nacional de Saúde, já recorrem à telessaúde. Os dados são do “Barómetro de Telessaúde e Inteligência Artificial no Sistema de Saúde”, que vão ser apresentados de forma mais detalhada a 22 de outubro, e indicam que a transcrição de voz (25%), o agendamento de atividades clínicas (14%) e a interpretação e extração de informação clínica (11%) são as áreas com mais projetos em atuação.

No futuro o relatório prevê que nos próximos dois anos as áreas com maior potencial de implementação ao nível da IA na saúde sejam a avaliação e estratificação do risco (69%), a interpretação e extração de informação clínica (67%), o agendamento de atividades clínicas (64%) e a gestão do doente crónico através da telemonitorização (64%).