Por Hugo Volz Oliveira (*)

Na semana passada escrevemos sobre a altercação entre António Costa Silva, Ministro da Economia, e Mariana Mortágua. Durante um debate parlamentar aceso, discutiu-se a posição favorável do governo face ao tema da inovação tecnológica na área da blockchain e da cripto economia e a sua relevância, ou falta de “postura crítica” sobre a mesma, para Portugal.

Depois de questionarmos o entendimento demonstrado sobre este sector – que foi acusado de ser apenas “uma inovação de boca cheia”, um ataque tipicamente usado contra qualquer inovação complexa que não consigamos compreender – é altura de concluir o artigo. Vamos então abordar algumas das aplicações mais relevantes e com impacto real da cripto economia.

Ora, em abstracto é amplamente aceite – dentro e fora desta indústria – que a blockchain e a cripto economia permitem diminuir os custos e as fricções dos mercados, pois eliminam intermediários que não acrescentam valor e automatizam processos de auditoria, democratizando assim o acesso ao financiamento e eliminando silos monopolistas. 

Mas aqui também concordamos que não nos podemos refugiar em chavões difíceis. Assim, deixando o intangível, há três grandes tipos de aplicações em que nos gostávamos de focar neste espaço finito em que temos a vossa atenção: financeiras, criativas e intergovernamentais.

No campo financeiro, cujas aplicações estão ainda na infância e naturalmente sujeitas às vicissitudes das primeiras iterações de qualquer ciclo tecnológico, temos já vários casos de sucesso. Bitcoin, o protocolo original, tem sido a melhor forma de combater a opressão de regimes autoritários e só por isso qualquer democracia liberal deveria apoiar este projecto. 

Mas também tem forçado a concorrência centralizada a diminuir custos e melhorar a oferta do mercado de remessas. E, para lá de Bitcoin, temos o detestado novo mundo da DeFi, ou das finanças descentralizadas. Tipicamente caracterizadas como uma reinvenção da roda, aqui os críticos esquecem-se convenientemente que há muitas arestas por limar no sistema financeiro, quadrado e opaco que não tem servido os interesses do público, como a inflacção actual demonstra. Pelo que ainda não há uma roda cuja reinvenção possa ser redundante. 

Especificando, já temos alguns sólidos mercados de crédito construídos por cima de Ethereum, o computador virtual descentralizado com mais adopção, mas não só. Sim, estes projectos ainda estão relativamente circunscritos aos participantes da indústria e limitados pela necessidade de sobrecolaterização. Mas já temos as grandes instituições financeiras a explorar o espaço pois sabem que é uma questão de tempo até as suas principais unidades de negócio percam quota de mercado para novas organizações mais ágeis, no contexto da teoria da inovação disruptiva, que começa sempre por ser ignorada. Mais, os reguladores adoram apertar o cerco ao sector bancário e o seu lobby poderoso está cada vez mais fraco à medida que as autoridades percebem que a transparência e automatização da blockchain serve o público. Não é por acaso que nenhum destes mercados sofreu com a falência fraudulenta da Three Arrows Capital e da FTX.

Algo semelhante acontece nos mercados de capitais. Os tradicionais estão cada vez mais restringidos às grandes empresas que ninguém gosta, especialmente o Bloco de Esquerda, devido ao asfixiar regulatório. Como consequência, o pequeno e médio tecido empresarial, que domina Portugal e a Europa, só tem acesso a mercados privados sem escala e com incentivos desalinhados. Aqui, a tokenização de valores mobiliários, ou acções, que está a ser explorada por reguladores de todo o mundo ocidental, irá melhorar a liquidez e diminuir o risco de empreender, sobretudo em áreas que não são atractivas para a indústria de capital de risco.

Quanto à criatividade, infelizmente a indústria da arte vai sempre depender de intermediários que tratam de curar e filtrar o que o público vem a descobrir. Mas já estamos a ver uma diminuição das rendas capturadas pelas grandes plataformas tecnológicas em conluio com os interesses instalados, como a Spotify ou o YouTube – ainda que não na música, por agora, mas pelo menos nas artes visuais. E sabemos que é fácil criticar os NFTs, sobretudo se os encararmos apenas como imagens caras. Novamente, estamos perante um componente tecnológico emergente, que precisa de tempo para que as suas aplicações revelem o seu potencial para quem não consegue imaginar um mundo diferente. As críticas tipicamente apontadas aos tokens não-fungíveis são análogas às dirigidas primeiro à fotografia e, depois, ao filme. Mas, como tendem a envolver um valor monetário, e como o dinheiro costuma estragar o prazer da criação, parece que a maioria acaba por se deleitar com outra grande fonte de gozo: o sarcasmo fraco.

Mas é inegável que esta tecnologia está a diminuir a fricção associada ao desenvolvimento artístico e às comunidades associadas, sejam estas DAOs (um tema com tanto pano para mangas deveria dar azo a um artigo à parte) ou simples associações ou até grupos informais. E à medida que surgem novas projectos vamos encontrar aplicações com impactos que não tinham sido considerados. É aqui que se encontra o perigo da sobre-reulação, pois não podemos antecipar que ideias vão surgir ou sequer vingar. Estendendo a linha de resposta de António Costa Silva, se tivéssemos regulado excessivamente a indústria automóvel ou da aviação no seu começo nunca teríamos tido carros ou aviões, dados os perigos e acidentes das primeiras iterações. Ou se tivéssemos regulado as aplicações da internet talvez tivéssemos mitigado o surgimento do TikTok, mas também perdíamos o Reddit ou o Discord e de certeza a Uber e Amazon.

Por último, no campo da gestão intergovernamental, a União Europeia tem anunciado algumas iniciativas que podem vir a tornar-se interessantes, especialmente no combate às alterações climáticas, como no caso dos mercados de carbono altamente fragmentados. A ver vamos.

Entretanto, em Dezembro de 2022 as Nações Unidas já tinham mais de 25 cripto projectos em curso, alguns com origem em pilotos anteriores a 2016. Noutro relatório de 2020, a Unidade de Inspeção Conjunta desta organização não só concluiu que diferentes aplicações de blockchain e da cripto economia podem ser úteis para todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, mas também que estas têm vindo a ser desenvolvidas porque e quando fazem sentido, em situações em que bases de dados centralizadas não são adequadas. 

Onde é que está o marketing e a ausência de impacto aqui?

(*) Secretário, Instituto New Economy https://neweconomy.institute

Nota: O autor escreve ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico.