Em 2021, a indústria de videojogos faturou 175,8 mil milhões de dólares em todo o mundo, com a Europa a afirmar-se como a terceira região do globo onde o gaming gera mais valor económico, depois da Ásia e dos Estados Unidos. Em ano de pandemia, o número global de jogadores continuou a crescer para atingir os três mil milhões. O segmento que gerou mais receita foi o dos jogos para smartphone (79 mil milhões de dólares), que ficou com quase metade do bolo, revelam os dados do estudo mais recente da consultora Newzoo, que não incluiu nas contas receitas relacionadas com publicidade, hardware ou jogos de apostas.
É difícil saber com exatidão de que forma contribui neste momento Portugal para os números globais de um sector que nos últimos dias tem estado em destaque com as compras bilionárias da Microsoft e da Sony. Dados da mesma Newzoo, fornecidos pela AICEP, referiam que o universo dos videojogos gerava receitas de 265 milhões de euros em Portugal em 2018 e que entre 2014 e 2018, a produção nacional de videojogos tinha aumentado 648%.
A última edição do Atlas do Sector dos Videojogos em Portugal complementa a informação, identificando as empresas nacionais, que à data seriam 94 (73 empresas e 15 criadores independentes), a empregar até 1.200 pessoas e a gerar receitas anuais de 31 milhões de euros.
Os dados compilados por investigadores das Universidades do Porto (GEGOT), Minho (CECS) e Lisboa (INESC-ID) datam, na sua maioria, de 2019 e alguns são de 2020 (ano de publicação) - empresas desapareceram e outras surgiram desde então -, mas são os mais trabalhados que existem sobre o sector, em Portugal.
Mostram os estudos e concorda quem está no meio, que esta é uma indústria que tem crescido e amadurecido, a nível nacional. Entre projetos nacionais e internacionais, há um pouco de tudo, no que toca a plataformas de eleição e a modelos de negócios, mas o que mais se destaca para quem acompanha há muito tempo a evolução do mercado é a profissionalização das empresas, que trouxe mais estabilidade e longevidade aos projetos.
Ricardo Flores, há mais de 15 anos na indústria de videojogos, refere isso mesmo, quando comenta a elevada taxa de mortalidade das empresas portuguesas de videojogos na última década.
“Muitas empresas não tinham o melhor modelo de negócios, ou não se souberam adaptar às mudanças do mercado. Às transições do premium para free to play, ou entre gerações de consolas”, adianta Ricardo Flores
“As empresas mais recentes - a partir da segunda metade da década passada, já nascem com uma visão mais empresarial. São lideradas por pessoas que vêm isto como um negócio e focaram-se em modelos que permitam pagar salários e continuar a crescer”, continua o diretor do estúdio da Lockwood Publishing em Lisboa, que tem estado ligado a diversas iniciativas de fomento da indústria.
A opinião é partilhada por Rui Guedes, fundador de um dos estúdios portugueses da “velha guarda”, que resistiu à turbulência da última década.
“O panorama nacional mudou muito, para melhor. Assiste-se a uma profissionalização grande e generalizada, o que é extremamente positivo. Passamos de ser "grupos de jovens a fazerem coisas" para sermos empresas que levam o negócio dos jogos a sério e fazem dinheiro com isso”.
Como também refere “obviamente pagou-se o preço da aprendizagem e da maturidade. Alguns estúdios/projetos falharam e os demais aprenderam com esses erros e evoluíram”.
Pedro Cabaço, CEO e cofundador da Volt Games, que chegou ao mercado em 2020, acredita, ainda assim, que continua a haver um caminho por fazer, para vencer a “lógica de fazer um jogo bonito, sem pensar na parte de negócio. Algo que resulta em jogos incríveis, porque há talento incrível em Portugal, mas fica a faltar aquele next step, de como comercializar, como chegar às massas”.
O bom e o menos bom da evolução tecnológica
Na verdade, o facto é que o mercado continua a evoluir rapidamente e o enorme desenvolvimento tecnológico dos últimos anos, se por um lado facilitou a criação de videojogos, por outro trouxe novos desafios.
A facilidade de acesso a ferramentas de desenvolvimento e às plataformas de publicação abriram as portas a quem quisesse entrar.
“Hoje com o Unity e todos os outros motores que existem é possível alguém criativo desenvolver um produto ou um jogo, perceber como o monetiza e depois distribuí-lo, seja em PC, consola - onde as certificações também passaram a ser menos complicadas, ou mobile”, admite Ricardo Flores.
Em teoria, qualquer pessoa pode criar e publicar o seu próprio jogo. Na prática, criar um jogo que dê nas vistas e que se torne rentável não é assim tão simples. “Hoje é preciso investimentos maiores em marketing e na aquisição de jogadores e há todo um know-how que passou a ter de se ter, que há uns anos não era necessário”, continua o responsável.
Esse investimento tem de ser feito pelos criadores, ou voltando à dependência dos publishers, que sabem como se monetiza, como se chega às plataformas, como se consegue destaque em prateleira.
Diogo Vasconcelos, que co-fundou e dirige a Nerd Monkeys, produtora do jogo na foto de destaque, Out of Line), partilha um exemplo. “Em 2013 quando publicámos o nosso primeiro jogo (Inspector Zé e Robot Palhaço em: Crime no Hotel Lisboa), na Steam foram publicados menos de 600 jogos. Em 2020 esse número estava acima dos 10.000 jogos publicados”.
Esta “hipersaturação” converge numa enxurrada de jogos sem barragem que a trave, como também defende Ricardo Correia, coordenador dos PlayStation Talents em Portugal e ligado a várias outras iniciativas na área dos jogos, destacando o impacto deste efeito sobretudo em plataformas como a Steam e a Nintendo Switch.
Do lado dos jogadores as mudanças terão sido muito menos óbvias, diz Diogo Vasconcelos. “Portugal, para ser completamente honesto, não evoluiu muito por parte dos jogadores, o estigma dos jogos continua bastante vivo. Só se consome um número específico de AAA e não há cultura de consumir e experimentar outros géneros de jogos”, admite.
O responsável acredita que iniciativas como o Game Pass, da Xbox, podem ter um papel importante para mudar esta realidade, ao permitir que não se pague mais para jogar qualquer um dos jogos numa selecção de centenas.
Quantos jogos se produzem em Portugal?
O único estudo abrangente que se faz em Portugal sobre o sector também identifica cá, a tendência global para um aumento da quantidade dos jogos produzidos e publicados, à nossa escala. Segundo o Atlas dos Videojogos, entre 2016 e 2019 produziram-se no país mais de 70 videojogos, 28 em 2019, na sua maioria para PC e mobile. Cerca de 40% destes títulos alcançaram lucros.
Conclui-se ainda que a maior parte das empresas que os fazem são já de média dimensão. Terão entre 10 e 50 colaboradores, a média será de 14 pessoas por estúdio, sendo de destacar que 20% dos projetos já terão mais de 50 colaboradores, acrescenta Jeferson Valadares, presidente da Associação dos Produtores de Videojogos Portugueses.
A maioria dos estúdios faz jogos próprios, muitos colaboram entre si e muitos desenvolvem para terceiros, como atividade principal, ou como forma de ajudar a financiar produtos próprios, caso da Volt.
Há ainda empresas que conseguiram alargar a cadeia de valor e começar a publicar jogos de terceiros, como a Nerd Monkeys; ou levar o know-how dos jogos para criar soluções noutras áreas, como faz a Ground Control.
Os recursos humanos são um dos temas críticos para a indústria, por boas e menos boas razões. Os dados mais recentes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior mostram que no último ano letivo inscreveram-se pela primeira vez nos 14 cursos relacionados com videojogos, onde se incluem cursos técnicos superiores profissionais, licenciaturas e mestrados, cerca de 430 alunos. A esta oferta é preciso juntar programas de formação de menor duração que não conferem grau.
É consensual que a formação nesta área, como em áreas mais gerais de programação, também aproveitados pelo sector, é boa. Muitos referem que é aliás uma das grandes mais-valias, aliada ao preço, para os investimentos internacionais que têm chegado a Portugal e para quem já cá estava.
Os promotores do recém-formado Digital Valley, um movimento para formar um cluster português de videojogos, defendem no entanto que a oferta está longe de ser suficiente para alimentar os projetos que existem e fazer surgir novos e assumem esta como uma das grandes missões do movimento, que na lista de parceiros já tem várias instituições de ensino.
Mas para vários dos estúdios que contactámos, o problema não está tanto na quantidade, mas essencialmente na senioridade. Cristiana Serra, que dirige o estúdio da britânica Marmalade, sublinha mesmo que os recursos humanos estão entre os pontos mais positivos de desenvolver jogos a partir de Portugal.
“Nós temos mão-de-obra qualificada para esta indústria e, acima de tudo, apaixonada e sedenta por uma oportunidade de fazer o que gosta no país onde nasceram. O pior é a falta de experiência real na indústria, o que significa que temos de contar com esse fator quando abrimos vagas e queremos expandir a equipa”.
A responsável reconhece que é difícil preencher lugares de liderança, encontrar colaboradores mais seniores e posições para a equipa de produção. “Isto prende-se acima de tudo com a escassez de candidatos com real e prévia experiência na indústria”.
Sistema fiscal não facilita desenvolvimento nem atração de investimento estrangeiro que crie valor
Contratar fora é muitas vezes a opção que resta para chegar a estes perfis, mas a concorrência é forte e os salários que se consegue pagar não ajudam. “Não somos apetecíveis para salários altos. É difícil recrutar recursos mais seniores que custam 60 a 70 mil euros ano, para pessoas com cinco a seis anos de experiência”, admite Ricardo Flores, frisando que o problema se coloca tanto para trazer gente para Portugal, como para apelar a quem trabalha cá, remotamente para empresas noutros países.
As questões fiscais e de enquadramento do sector são as que mais preocupam quem nele trabalha e o ponto mais negativo apontado por quase todos os estúdios com quem falámos. A resposta mais inspirada sobre o bom e o mau de criar jogos a partir de Portugal é de Rui Guedes, da Ground Control, depois de elogiar o clima, as pessoas, a gastronomia, o custo de vida e a formação de calibre mundial do país nas engenharias.
“Portugal é agradável se o nosso estúdio estiver baseado noutro país e as pessoas estiverem a auferir um salário desse país enquanto residem cá. De outra forma é uma empreitada francamente quixotesca”, afirma Rui Guedes.
Ironia à parte, os argumentos para a conclusão são bem concretos. O responsável defende que as empresas em Portugal “sofrem uma carga fiscal quase criminosa e bloqueadora do seu desenvolvimento económico''. A isso somam-se os encargos grotescos sobre os salários que encarecem as remunerações dos colaboradores e destroem totalmente a nossa competitividade com estúdios estrangeiros”.
Muhammad Satar, fundador e CEO da Infinity Games, acrescenta a isso o peso de em Portugal os jogos não serem legalmente considerados “Arte” ou “Cultura”, bloqueando a capacidade de as empresas competirem ao mesmo nível, e com os mesmos recursos, a que outras startups têm acesso lá fora.
“Portugal continua a ser um hub de excelente talento e várias empresas tendem a recrutar em Portugal e a ter os seus recursos humanos cá, contudo, criar novas startups de videojogos e ganhar tração num mercado internacional bastante competitivo continua a ser dificil”.
Estas questões, a par de outros, estão precisamente no centro das preocupações da associação do sector e do movimento Digital Valley, ambos a darem os primeiros passos e a cooperarem em diferentes áreas. Eram também dois dos temas que sobressaiam já como prioritários para as empresas que participaram no Atlas dos Videojogos. Acima dessas, só se destacou a falta de capital, que em parte pode ser mitigada com a criação de incentivos específicos para o sector. O outro caminho será diversificar fontes de financiamento.
Diogo Vasconcelos diz que aqui também ainda há um caminho a fazer, que implica mudanças na formas como o capital de risco olha para os videojogos. O empreendedor conta que quando a pandemia limitou as viagens a eventos internacionais B2B para negociar trabalhos, contratos de publishing e obter investimento, tentou fazer o mesmo em Lisboa e ouviu de mais do que um fundo de investimento que são agnósticos em relação às áreas de investimento, excepto videojogos. “É completamente absurdo ouvir isto e ao mesmo tempo ver uma indústria em constante crescimento e que desde 2009 supera a faturação anual global da indústria do cinema e da música juntos. Surreal”.
Mas também aqui a realidade está a mudar e há alguns exemplos que o atestam. A Doppio, que em 2019 levantou um milhão de euros, acredita que “não há falta de investidores, há é falta de projetos formatados para este tipo de investidores”. Muitas vezes, refere o co-fundador Jeferson Valadares, “não há encaixe entre o que os VC procuram e o que as empresas têm para oferecer.
Muita gente quando cria uma empresa fá-lo para desenvolver um jogo que quer jogar. Isso não é o que o venture capitalist está à procura, os VC procuram alguma coisa que exploda, seja uma ferramenta, uma tecnologia, uma plataforma”.
Mas mesmo com os constrangimentos que se conhecem, têm nascido e crescido projetos inovadores e rentáveis em Portugal, que trazem otimismo às perspetivas para os próximos anos. Portugal tem também conseguido atrair algum investimento estrangeiro. A Miniclip é um dos exemplos mais antigos, entre as multinacionais que criam jogos próprios a partir de Portugal, já com mais de 300 pessoas. Mais recentes, há o da britânica Lockwood Publishing, que há quase dois anos abriu uma filial em Lisboa; os exemplos de empreendedores que escolhem Portugal para montar negócios, como os fundadores da Doppio, um brasileiro e um americano; ou os de aquisições de estúdios locais por players internacionais, como fez a Saber Interactive com a Bigmoon, em 2019.
Há mesmo a expectativa de que Lisboa (que tal como o Porto lideram em número de empresas nesta área) possa transformar-se no próximo hub europeu de desenvolvimento de videojogos, graças à qualidade e ao preço dos recursos, face a outras localizações.
Para passar ao próximo nível e tirar o melhor partido desta oportunidade faltará evitar que as “empresas estrangeiras se estabeleçam em Portugal apenas com o objetivo de terem acesso aos recursos humanos de Portugal, mas paguem os seus impostos em países terceiros, não produzindo grande valor para a economia nacional”, diz Muhammad Satar. Ao mesmo tempo, acrescenta, é preciso evitar que “as startups que se formam em Portugal e que beneficiam do ecossistema português acabem por migrar para outras economias quando atingem um determinado patamar, para poderem crescer com menores limites tributários”.
Este artigo faz parte do especial Desenvolver jogos em Portugal: Quem, como e para onde?
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