A primeira tentativa europeia de regulação da inteligência artificial tem provocado diferentes reações no mercado. A Comissão Europeia anuncia-a como um esforço para endereçar os riscos envolvidos no uso de IA e proteger os valores da UE, em termos de direitos humanos e privacidade, promovendo um enquadramento transparente e que reforce a confiança dos cidadãos na economia digital.
A proposta, apresentada já durante a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, quer impor requisitos obrigatórios para os sistemas considerados de alto risco (exemplo: identificação biométrica remota, incluindo reconhecimento facial) e proibir os sistemas de risco inaceitável. Prevê multas que podem chegar aos 6% da faturação anual global das empresas.
A indústria tem receio que o excesso de regras acabe por ser um bloqueio à inovação, mas também há quem diga que podem surgir daqui novas oportunidades de inovação, ou mesmo as bases para um posicionamento mundial pioneiro em relação à IA, que acabe afinal por atrair negócio para as empresas da região.
“Estas iniciativas são extremamente relevantes para que a inteligência artificial seja reconhecida como uma ferramenta positiva para a humanidade, sem que seja posta em causa pela falta de regulamentação”, sublinha Vasco Pedro, CEO da Unbabel, que considera a regulação e a supervisão essenciais para o crescimento sustentado da inteligência artificial.
A regulação é vista pela empresa como fundamental para potenciar a “boa” utilização da tecnologia, como um meio para resolver problemas, “potenciar a produtividade dos humanos ou chegar onde outras tecnologias ainda não chegam - hoje em dia, sabemos que a IA é muito melhor a detetar cancro do que os humanos através de um raio X”, exemplifica Vasco Pedro.
Limitações à utilização dos dados
Mas para a Unbabel há aspetos que podem ser melhorados na abordagem pioneira da CE à IA, sobretudo em termos de ambição. Comparando Europa e Estados Unidos, “o que se destaca é a disposição americana para arriscar e a celeridade com o que o faz”. Na Europa, “a postura tende a ser mais conservadora, por isso temos mais dificuldade em arriscar de forma célere e em levar a cabo mudanças estruturais”.
Os caminhos seguros dão mais garantias, mas bloqueiam aqueles “rasgos” que impactam o mundo, como mostram um Facebook ou uma Tesla, que partiram de simples ideias com espaço para se desenvolverem. “Na Europa, os desenvolvimentos são normalmente consequências lógicas do contexto e não ideias disruptivas”, lamenta Vasco Pedro.
Este artigo integra o Especial Inteligência Artificial em Portugal
As limitações à utilização dos dados é outro aspeto apontado pela Unbabel e focado por mais empresas, com uma desvantagem da Europa, na competição com outras regiões do globo nesta área da IA. Este é “um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da Inteligência Artificial na Europa”, defende o CEO da Unbabel, que encontra aspetos positivos nestas limitações, “contudo, se compararmos com as outras grandes potências mundiais - a China, onde as restrições são praticamente nulas e os Estados Unidos, onde existe pouca regulamentação -, nestes países a IA está bastante mais desenvolvida”.
Francisco España partilha o mesmo sentimento agridoce, em relação ao posicionamento europeu nesta matéria. ”É uma área onde temos de ter cuidado para não cair num excesso de regulação na UE que, com o bloqueio de certos use cases, acabe por bloquear inovação”. Também o vice-presidente da DefinedCrowd aponta o impacto do RGPD nos desenvolvimentos nesta área, sublinhando que “ao criarmos estas restrições bloqueamos a IA e a inovação e fomenta-se a tentação de levar as empresas para mercados menos regulados, numa altura em que sabemos que é preciso investir e inovar mais”.
Para DefinedCrowd a chave está em trabalhar um equilíbrio, que permita não cair numa situação em que “damos o dinheiro e colocamos o travão ao mesmo tempo”. A empresa também defende que as empresas do sector podem ter um papel importante na desmistificação do conceito de IA e podiam, por exemplo, desempenhá-lo através de um consórcio que trabalhasse as questões da transparência.
“Claro que temos de ter cuidado, sobretudo quando usamos IA nos sistemas mais críticos, mas na verdade nesses casos a tecnologia funciona ainda, sobretudo, como recomendação”, como acontece na medicina, exemplifica España. A palavra final numa operação assistida por IA continua a ser do humano.
Regulação pode ser uma oportunidade de negócio
Por outro lado, quem está na indústria também encontra potencial nas preocupações éticas da Europa, para criar uma vantagem competitiva para as empresas da região e em concreto para Portugal, como sublinha a Talkdesk.
“É precisamente a regulação e a preocupação com a segurança e ética na Inteligência Artificial, aliado ao facto de a Europa ter um caminho feito nesta área da regulação, que torna Portugal tão atrativo para deter uma posição relevante e determinante no panorama mundial da Inteligência Artificial”, defende Pedro Andrade, Head of Automation do unicórnio português.
Pedro Bizarro acredita ainda que as limitações que a Europa quer impor nesta área, devem ser vistas como uma oportunidade de negócio. Uma oportunidade para inovar e criar soluções que consigam entregar o valor da IA, sem “pisar o risco”.
O co-fundador e Chief Science Officer da Feedzai nota, aliás, que a lógica europeia está em linha com uma evolução global na forma de olhar para estas tecnologias, que reflete maturidade e conhecimento. Compara a evolução na forma como olhamos hoje para a IA, com o que já fizemos nos carrros.Na IA, até há uns anos, havia sobretudo uma preocupação com a qualidade pura do modelo. Nos carros o importante era a potência do motor. Hoje interessam-nos outros aspetos, como a segurança, a pegada ecológica, etc.
“O mercado evoluiu e na IA tem acontecido o mesmo. Estamos numa fase em que começa a haver a preocupação de, estando a lidar com sistemas poderosos, desenvolvê-los bem e conseguir minimizar efeitos secundários negativos”.
Pedro Bizarro reconhece que a tarefa não é fácil, porque a definição de IA continua a ser ambígua e a própria definição europeia parece demasiado abrangente. Ainda assim, garante que a Feedzai está “longe de achar que há algum risco de bloquear a inovação” no esboço da proposta europeia.
Investimento é curto para competir com China ou Estados Unidos
A inteligência artificial é assumidamente uma das tecnologias emergentes, em destaque na estratégia de transformação digital da UE. Tem reservados no recém-aprovado Programa Europa Digital investimentos de 2,1 mil milhões de euros, é considerada um dos pontos-chave na transformação digital das empresas - é um dos quatro eixos da chamada Bússola Digital, em consulta pública - e a referência (na perspetiva ética) não podia faltar na Declaração de Lisboa.
Mas as contas mostram que é preciso fazer muito mais para alcançar o maior de todos os objetivos: fazer da região uma referência mundial nesta área e um mercado atrativo ao investimento.
Um estudo recente do Banco Europeu de Investimento conclui que a Europa é responsável por 7% dos investimentos anuais de capital, realizados a nível global, em tecnologias de inteligência artificial e blockchain. Estados Unidos e China, em conjunto, absorvem 80% do capital aplicado por investidores a estas tecnologias, que anualmente se fixa nos 25 mil milhões de euros.
O estudo sublinha o papel muito limitado dos grandes investidores institucionais no ecossistema europeu e idêntica área onde a UE terá maiores oportunidades para acelerar na aplicação destas tecnologias, destacando a indústria e o sector público.
Reduzir este gap de investimento, de cerca de 11 mil milhões de euros, requer medidas concertadas, que seguramente passarão também por agilizar e tornar mais acessível o registo de patentes, uma área onde as empresas continuam a considerar a UE muito pouco competitiva face a geografias como os Estados Unidos. Ou pela não menos solicitada reforma dos sistemas fiscais e da tributação de mais-valias, entre outras.
Este artigo integra o Especial Inteligência Artificial em Portugal. Veja todos os artigos publicados sobre o tema
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