Nos últimos anos a Inteligência Artificial (IA) afirmou-se como denominador comum de vários projetos nacionais, reconhecidos a nível global. Nas suas mais diversas áreas, a IA já é crítica para o negócio de muitas empresas. É a substância de vários projetos de investigação em universidades e centros de I&D - recorde-se que a Fundação Champalimaud foi recentemente considerada pela revista Nature a quarta melhor instituição sem fins lucrativos na área da inteligência artificial. Tem dado mote a diversos investimentos estrangeiros, que desenvolvem soluções e serviços à volta dos recursos de IA e que encontraram em Portugal as condições ideais para desenvolver estes projetos. 

Este dinamismo tem alimentado a ideia de que Portugal pode ter condições para se afirmar como um hub de IA, no contexto de uma Europa que, comparativamente a outras regiões do globo está a dar os primeiros passos na área, mas não quer ficar para trás na corrida. 

O potencial do país na área da IA já foi analisado em estudos, tem sido debatido e defendido em alguns fóruns, como aconteceu na última edição da Web Summit - onde centrou o debate entre Daniela Braga, fundadora da DefinedCrowd e Carlos Moedas - e é uma das áreas potencialmente a cobrir nelos Digital Innovation Hubs que o Plano de Ação para a Transição Digital prevê implementar. 

A DefinedCrowd assume-se como dinamizadora desta ideia e Francisco España admite que os últimos meses e semanas foram intensos em contactos com várias entidades, públicas e privadas, para alinhar agulhas sobre um modelo que permita passar do sonho à realidade e lançar as bases de um hub nacional de inteligência artificial. 

O vice-presidente e diretor-geral da multinacional portuguesa sublinha a evolução do país nesta área, nos últimos quatro cinco anos. “Quando olhamos para os nossos unicórnios vemos que a inteligência artificial faz parte do core business, é crítica para os negócios destas empresas. Há também uma evolução profissional das pessoas e um apetite enorme dos privados para acelerar a IA e estar na linha da frente da utilização destas tecnologias nos seus serviços”. 

A opinião é partilhada por várias outras empresas, que têm na IA o elemento central do negócio, como a Unbabel. Vasco Pedro, co-fundador e CEO da tecnológica que desenvolveu uma plataforma de tradução automática baseada em IA e complementada com revisão “humana”, recua uma década para reconhecer também a forte evolução do país na área da IA, que hoje se materializa “num número significativo de pessoas com formação na área e um leque de empresas de referência no desenvolvimento da tecnologia”. 

“Quando olhamos para os nossos unicórnios vemos que a inteligência artificial faz parte do core business, é crítica para os negócios destas empresas. Há também uma evolução profissional das pessoas e um apetite enorme dos privados para acelerar a IA e estar na linha da frente da utilização destas tecnologias nos seus serviços”, Francisco España, vice-presidente e diretor-geral da DefinedCrowd.

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Como nota o responsável, isto acontece num mercado que em 2021, pelas contas da IDC, deverá já valer em todo o mundo 327,5 mil milhões de dólares e que se refere a uma tecnologia com potencial em todas as indústrias e, consequentemente, para todas as economias. 

DefinedCrowd quer dinamizar hub de IA

Portugal tem a vantagem de “nos últimos anos ter conseguido atrair muitas tecnológicas, que hoje desenvolvem e aplicam tecnologias neste domínio”, o que acabou potenciar a disponibilidade e qualidade de capital humano, que por outro lado tirou partido da qualidade da formação, como destaca Pedro Andrade, Head of Automation da Talkdesk, que vê hoje no país uma posição difícil de bater no mix: preço, qualidade, capacidade e inovação.   

Este artigo integra o Especial Inteligência Artificial em Portugal

Somam-se depois o habitual leque de argumentos: a posição geográfica, o clima, estilo de vida, boas infraestruturas nas principais cidades, ou aspetos como a segurança e a estabilidade política, variáveis onde Portugal costuma destacar-se face a outras geografias e que se espera continuem a ter o seu peso também nesta área. 

Contas feitas, a DefinedCrowd acredita que a substância para levar a ideia de criar um hub europeu de IA em Portugal a bom porto está lá, mas em termos práticos só pode concretizar-se assegurando e definindo alguns aspetos essenciais: “precisamos de investimento, para ter o talento certo e executar as coisas certas. Precisamos definir quem vai investir e quem participa”, aponta Francisco España. Outro aspeto crítico, para não repetir erros do passado com iniciativas deste tipo, é ir além de um caráter mais académico e pouco preparado para monitorizar o retorno dos investimentos aplicados. A empresa defende que é preciso criar uma estrutura, preparada para prestar contas sobre a forma como se gasta o dinheiro que se usa.  

“O que nós queremos propor é um hub de inovação que seja gerido como são geridos os fundos de empresas, com um board, onde se façam representar entidades públicas, privadas e académicas”, explica o gestor. “Ter um esquema de pessoas já com experiência nesta área, para que se possam fazer as apostas certas, no sítio certo”, com uma estrutura para a apoiar todo o “life cycle de financiamento que tem uma empresa - seed, Serie A, Serie B… passando por por toda a due dilligence que passamos com uma empresa, para que os projetos possam acabar todos em produção”. 

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Os fundos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência para a transformação digital, e concretamente para a IA, podem ser um dos grandes motores desta ambição. Mas quem está no mercado defende que potenciar esses recursos passa em larga medida por sujeitar os projetos apoiados, ao mesmo nível de pressão e análise de uma qualquer empresa. “Poder ser interessante ter menos fundos e mais focados, ao contrário de tentar espalhar para investir em todo o lado”, sugere Francisco España. 

Para a DefinedCrowd “temos genuinamente uma oportunidade de nos pôr no mapa”, nesta área da IA e a dimensão do país não é um impedimento. O exemplo de Israel, referência mundial na área da cibersegurança, é apontado por várias empresas para justificar a tese. 

Tempo: é ou não o x da equação? 

Por outro lado, é indispensável considerar o fator tempo. O tempo que precisamos para organizar a inovação nacional nesta área para objetivos maiores e o tempo que outros países precisam para fazer o mesmo. Afinal, a competição para atrair talento escasso, criar condições para “fabricar” unicórnios e fazer da IA uma bandeira para a transformação digital está ao rubro.

Se não veja-se: França anunciou que vai investir 1,5 mil milhões de euros em IA até 2022, com 700 milhões de euros para investigação. A Alemanha reservou 3 mil milhões para investir até 2025 e Itália pretende investir 2 mil milhões de euros entre público e privado (dados apontados pela Faber).  

“O conceito de stock options, muitas vezes oferecido por startups aos seus colaboradores: em Portugal, a parte legal é mais complexa e a taxação muito mas muito mais alta (o dobro ou triplo) do que noutros países”, Pedro Bizarro, cofundador e Chief Science Officer da Feedzai

A Feedzai é outra referência portuguesa, entre os negócios que baseiam no poder dos algoritmos a capacidade de fazer a diferença, neste caso na deteção de fraude. Pedro Bizarro, cofundador e Chief Science Officer da empresa, também acredita no potencial do país para se afirmar em escala nesta área da IA. Pelo trabalho que muitas empresas têm vindo a fazer, mas também pela quantidade de investigadores com anos de estudo e artigos de relevo publicados no domínio da IA, mas sublinha a importância do fator tempo, para alcançar resultados.   

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“Estas coisas têm de ser feitas a muito longo prazo. Não se cria um cluster mundial especializado numa área com um par de anos”, defende, e dá o exemplo de Silicon Valley, “que é uma história de investimento contínuo há cerca de 70 anos”. 

“Temos de começar a pensar nessas escalas [investir em força] durante muito tempo e a partir daí criar um ecossistema em que as universidades criam talento, as empresas contribuem para esse talento com problemas, mas também colocando esse talento a fazer investigação aplicada”, aprofundando um círculo positivo entre empresas, universidades e I&D. 

Investir nas universidades é crítico

A Faber, gestora de um fundo de investimento focado em tecnologias emergentes, IA sobretudo, defende que onde Portugal pode competir internacionalmente, para já, é no ensino e na academia - ensino de elevada qualidade disponível e aberto para portugueses e não só. 

“O potencial de Portugal, à sua escala, poderá ser amplificado por via de aposta na forte captação de recursos humanos pela academia, ora captando de fora de Portugal pessoas que vêm fazer a sua formação e investigação, ora voltando a atrair os portugueses que foram para fora e, acima de tudo, reforçando a capacidade de reter os que já estão cá”, defende Sofia Santos, partner da capital de risco. 

“Mais do que um hub focado na disponibilização no curto prazo de pessoas qualificadas para ‘consumo das empresas estrangeiras’”, a Faber defende que Portugal deve apostar “num hub de conhecimento distribuído, amplificando o que temos reconhecidamente de distintivo - as instituições, o ensino e investigação nestas áreas”. Para lá chegar precisamos de ampliar a infraestrutura académica e universitária.

“Sabemos que o mundo empresarial global vai tender a deslocalizar-se para onde estão as competências do futuro, como as competências relacionadas com dados e IA e sabemos que partimos de uma base de talento de elevada qualidade, mas pequena para as necessidades e, tal é uma realidade mundial”, admite Sofia Santos.

“O potencial de Portugal, à sua escala, poderá ser amplificado por via de aposta na forte captação de recursos humanos pela academia, ora captando de fora de Portugal pessoas que vêm fazer a sua formação e investigação, ora voltando a atrair os portugueses que foram para fora e, acima de tudo, reforçando a capacidade de reter os que já estão cá”, defende Sofia Santos

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Num quadro mais macro, a responsável acredita que Portugal terá dificuldades em competir na IA “com países já significativamente capacitados não só pelo investimento, mas porque não tem capacidade industrial sofisticada e em dimensão”.

“O tecido industrial português ainda é de pequena dimensão, pouco sofisticado e lento na adopção de IA, para conseguir atrair em escala este tipo de recursos”. Neste domínio a concorrência são países como a Alemanha ou o Reino Unido, onde os desafios e os problemas que a indústria precisa de ver resolvidos são só por si um fator de atração de talento e novos projetos, acredita a gestora. 

A esperança está nas scale-ups

Mas as limitações que temos de um lado, podem ser compensadas com o potencial noutro. A realidade “instalada” e a que começa a desenhar-se podem ditar dois caminhos muito diferentes, para o tamanho do sonho português na área da IA, assim o ambiente económico o favoreça. 

“Não haja dúvida: a nova vaga de scale-ups tecnológicas é que poderá mexer o ponteiro do futuro neste aspecto. Será a forma mais rápida de ter pontos âncora para atrair e reter esse talento”, defende Sofia Santos. “Para que tal aconteça, há que financiar essas empresas e ter as infraestruturas legais, aliadas a uma estratégia de imigração inteligente e aberta”.

“Para que Portugal consiga acompanhar bem esta disputa [por talento e polos de inovação na IA] considero que será fundamental que o Estado adote o papel de facilitador, ou seja, minimize os entraves ao investimento, descomplique a burocracia e aumente a acessibilidade aos serviços públicos, por parte de residentes estrangeiros”, Vasco Pedro, CEO da Unbabel

Nesta área da importação de talento, a perspetiva das empresas com operações em vários países sobre o que se faz em Portugal, é positiva. Sobretudo em comparação com mercados como os Estados Unidos, como sublinha Francisco España, que aponta iniciativas positivas, como o Tech Visa. Embora tenha escritórios nos Estados Unidos e no Japão, a maior parte das cerca de 300 pessoas que trabalham na DefinedCrowd estão em Lisboa e no Porto, onde está “o coração e os pulmões” da empresa. É portanto cá que decorre a maior parte dos processos de recrutamento da companhia, que integra gente de 30 nacionalidades.

Já noutras questões legais, como a burocracia e o nível de impostos, os gestores concordam que Portugal - e a própria UE - têm um longo caminho a percorrer, para poderem competir com outras regiões do globo. 

“Temos impostos corporate completamente desproporcionais, em relação ao que acontece noutras geografias e isso é um problema porque economicamente o país perde”, sublinha Francisco España, que defende mais flexibilidade e criatividade na utilização dos instrumentos fiscais, para que sejam eficazes e possam contribuir para atrair investimento e não contrário. 

A tributação das mais-valias, em Portugal como genericamente na UE, é um dos aspetos mais apontados pelas startups, tendo até já dado origem ao movimento Not Optional. Pedro Bizarro também a destacou. “O conceito de stock options, muitas vezes oferecido por startups aos seus colaboradores: em Portugal, a parte legal é mais complexa e a taxação muito mas muito mais alta (o dobro ou triplo) do que noutros países”. 

“Para que Portugal consiga acompanhar bem esta disputa [por talento e polos de inovação na IA] considero que será fundamental que o Estado adote o papel de facilitador, ou seja, minimize os entraves ao investimento, descomplique a burocracia e aumente a acessibilidade aos serviços públicos, por parte de residentes estrangeiros”, destaca também Vasco Pedro, da Unbabel. 

A necessidade de reforçar a capacidade de investimento disponível é outro tópico. Investimento público, mas também investimento privado. “Já temos muitas iniciativas para pequeno financiamento, mas à medida que a empresa avança e que as necessidades de capital também avançam não há suporte, nem a nível público nem privado”, nota Francisco España, sublinhando que é precisamente nesta fase que muitas empresas acabam por não resistir. 

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