Entrar numa sala com muito perto de 100 mesas de jogo pela primeira vez tem o seu quê de surpreendente. O barulho das fichas é impossível de ignorar. Há estilos pessoais para todos os gostos: roupas mais coloridas, outras mais discretas, muitos óculos de sol e um ou outro chapéu alto ou lenços para tapar nariz e boca. A chamada “poker face” é comum, mas não é de todo obrigatória...
À primeira vista identificam-se vários rostos femininos, mas num segundo olhar percebe-se que a grande maioria são dealers – quem dá as cartas na mesa de póquer. Tentar contar as mulheres que jogam profissionalmente já é bem mais difícil, porque são mesmo muito poucas. Mas há uma descendente de portugueses entre elas. E está na European Poker Tour Barcelona para tentar ganhar main prizes ou um dos Platinum Pass disponíveis.
Fatima Moreira de Melo é holandesa, filha de um diplomata português e jogadora de hóquei em campo, medalhada nos Jogos Olímpicos de 2008. Foi o “papel” de desportista profissional que lhe valeu o convite da PokerStars como embaixadora do jogo, que assumiu no ano seguinte. E ser mulher.
Diz que o “bichinho” do póquer nasceu com ela, que está na sua essência, que sempre gostou de jogos. Aponta que passou horas e horas da sua infância e adolescência a jogar Monopólio, xadrez, cartas e a fazer vários desportos, mas considera que isso não se passa com a maioria das mulheres.
“Se ter poker face é estar tipo zombie, então não costumo ter poker face. Sou muito expressiva. Costumo falar, rir e fazer piadas”, Fatima de Melo
Para Fatima há duas coisas que “travam” as mulheres: “emancipação e hormonas”. Fazer desporto ainda é um luxo em muitos países para muitas mulheres, diz. “Se vives num país mais rico, há mais oportunidades para as mulheres no geral e, logo, no desporto. Na Holanda há muitas mulheres com sucesso no desporto porque temos muitas oportunidades”. A questão também é cultural.
Com um percurso muito diferente, Maria Konnikova tem uma opinião idêntica sobre a falta de mulheres no jogo de cartas. Membro da Team PokerStars Pro desde o passado mês de julho, depois de ter sido a primeira mulher a ganhar um Platinum Pass para a PokerStars Caribbean Adventure (PCA) - a entrada paga para o torneio de alto valor nas Bahamas -, já era “afiliada” da comunidade desde há cerca de um ano, quando começou a jogar. Até à altura, não sabia nada de nada sobre o jogo. Mas essa história fica para contar mais à frente... Por agora interessa a ideia defendida de que o póquer ainda é “um mundo de homens”.
Toda a conotação negativa que ainda existe em redor do póquer não ajuda. “As mulheres já são julgadas por tanta coisa na sociedade. Entrar num jogo considerado por muitos gambling [palavra normalmente traduzida para a expressão jogos de azar] é complicado”. Maria diz ter sorte, porque a família a apoia imenso. Tirando a matriarca… “Não consigo acreditar que te transformaste numa gambler”, diz-lhe muitas vezes a avó. “Claro que todos nós rimos”, comenta, mas a avó de Maria representa a maneira de pensar de muita gente por todo o mundo.
“Os meus pais acham que eu jogar póquer é a coisa mais fixe do mundo, o meu marido é o meu maior apoiante, agora a minha avó, vinda da antiga União Soviética, acha que eu me tornei numa prostituta”, Maria Konnikova
E é mais fácil jogar com mulheres ou com homens? Maria diz que a pergunta é impossível de responder porque a maior parte das vezes só joga com homens e os torneios só para mulheres são muito diferentes.
“Acho que as mulheres dão excelentes jogadoras de póquer, têm potencial para serem absolutamente incríveis. Só precisamos de ser mais. É esse um dos meus objetivos: trazer mais mulheres para o póquer”, Maria Konnikova
Independentemente do género, importa a personalidade de quem joga, considera Fatima de Melo. “Embora ache mais difícil quando jogamos só mulheres”, responde com ar pensativo, notando que também está mais habituada a jogar com “eles”. “Os homens sei como avaliá-los, sei como pensam que eu jogo… com as mulheres é diferente, sei muito pouco coisa!”, afirma enquanto ri.
Com percursos profissionais diferentes, Fatima de Melo e Maria Konnikova levaram para o póquer a sua experiência, a primeira como desportista, a segunda como escritora com doutoramento em psicologia. “A concentração foi o que ‘transportei’ de maior do hóquei em campo para o póquer”, refere Fatima. A maior diferença entre as duas coisas é que o póquer é individual. “Aqui a responsabilidade é só minha”.
“No hóquei temos o resto da equipa para nos apoiar. Agora, quando perco, sou eu que perco. É muito diferente. Mas a liberdade também é diferente. E eu gosto de ter esta responsabilidade”, Fatima de Melo
Para a holandesa de pai português, além da concentração, um bom jogador de póquer tem de ter paixão pelo jogo, ser competitivo e ser paciente, “algo que eu não tenho naturalmente”, confessou. “Sou demasiado curiosa. Tenho de treinar melhor esta parte”, ri-se.
Maria Konnikova acha que uma das coisas que mais a ajudou a “subir” no universo do póquer em apenas um ano foi o facto de poder aproveitar várias partes do seu background. “A minha tese foi sobre tomada de decisão em situações de risco e incerteza. Estudei, de uma perspetiva académica, tudo o que acontece na nossa mente nesse momento. No póquer posso realmente observá-lo”.
“Tendo background como escritora, costumo observar as pessoas: estou habituada a ser a ‘mosca na parede’. À mesa as pessoas estão a fazer determinadas coisas e eu vou 'tirando notas'. E posso ser muito silenciosa e perceber o que se está a passar…”, Maria Konnikova
Mas mais do que levarem as suas experiências de vida para o póquer, Fatima de Melo e Maria Konnikova levaram o que aprendem na mesa de jogo para a vida de todos os dias. “Tornei-me bem mais confiante. Tenho muitas vezes a sensação de não ‘encaixar’ em determinado lugar, e a mesa de póquer deu-me conta disso. E ajuda-me a ‘trabalhar’ isso”, diz Maria, referindo-se ao trajeto pouco usual, por ter começado a jogar para encontrar material para escrever um livro novo sobre a importância da sorte.
Fatima de Melo também destaca a autoconfiança. “Aprendemos imenso enquanto jogamos. Afinal, no fim trata-se de assumir a responsabilidade por tudo o que fazemos na vida. Seja na mesa de jogo ou no resto”, aponta. “Somos confrontados com o que fazemos de errado e temos de lidar com isso, assumir responsabilidades e seguir em frente. Sem culpar ninguém”.
E se lhe perguntarmos o que gosta mais quando está a jogar póquer, a holandesa de nome português responde de imediato que é tomar a decisão ideal. “É como fazer a assistência perfeita no hóquei e a colega de equipa fazer um golo. É a mesma sensação”.
“O póquer é um jogo, mas é um jogo que dá uma excelente metáfora para a vida. Dá-nos competências de decisão de uma forma que a vida em si não nos ensina”, Maria Konnikova
“No póquer estamos num ambiente circunscrito à mesa, controlado, mas estamos tomar decisões perante outras pessoas, estamos a viver dramas de uma vida inteira à mesa e temos o feedback imediato das nossas decisões", considera Maria. É o ambiente perfeito para realmente aprendermos. E perceber que é possível aplicar esses conhecimentos a coisas diferentes”.
“O póquer é um jogo de competências. É totalmente diferente de outra coisa qualquer que se joga no Casino. Claro que há o elemento sorte, mas há o elemento sorte em quase tudo o que fazemos na vida”, Maria Konnikova
Quanto à importância que a sorte tem na vida. “Ainda estou longe de acabar o livro”, admite Maria Konnikova, que entrou no mundo do póquer para escrever um livro sobre o assunto, "mas ~de certeza que a sorte representa um papel muito importante".
E fazemos a nossa própria sorte? A resposta é veemente: “Não, não, não. Detesto essa frase. Não faz sentido”. Defende que a sorte é probabilidade. “E não podemos fazer probabilidade. Ela apenas existe”. Acha que é possível treinar capacidades e quando há sorte, juntam-se as duas coisas e fazem a situação ótima.
E desejar boa sorte, pode-se? “'Boa sorte’ aceito sempre", responde prontamente . "Precisamos da sorte do nosso lado. Há pessoas que acham que desejar sorte dá azar, eu não! Quero toda a sorte do mundo. Desejem-me toda a sorte do mundo!”.
Nota de Redação: A jornalista viajou para Barcelona a convite da PokerStars.
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