A STAYAWAY COVID foi apresentada hoje ao público, por entre apelos ao “dever cívico” de usar a aplicação de rastreamento de contactos. À medida que o número de downloads da solução tecnológica, desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas de Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) em parceria com o Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) chega aos 121 mil, a Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais e a DECO alertam para algumas questões importantes que ficaram por responder.
Em comunicado, Ricardo Lafuente, vice-presidente da D3, afirma que existem “lacunas e indefinições” no que toca à forma como a aplicação de rastreamento de contactos funciona. “A gravidade da pandemia impõe que não andemos a brincar às apps”, enfatiza o responsável, acrescentando que os recursos que existem “devem ser colocados à disposição dos métodos que sabemos funcionar, e não para financiar aventuras tecno-fantasiosas de uma app que virá salvar a situação”.
O vice-presidente da D3 sublinha que “temos de aceitar que não virão soluções milagrosas providenciadas pela tecnologia, e devemos antes confiar na eficácia comprovada das medidas já levadas a cabo pela DGS”. Para o responsável, todos devemos fazer a nossa parte para evitar a propagação da doença, “mas não é preciso instalar uma app para isso”.
Para a D3, a STAYAWAY COVID ainda não se redimiu dos “pecados mortais” apontados em julho. Ao todo, a visão da Associação D3 aponta quatro questões centrais cuja resposta ainda não foi dada.
O Governo está a "ajoelhar-se" perante a Big Tech?
De acordo com Ricardo Lafuente “o apoio entusiasmado do Governo à STAYAWAY abre um grave precedente ao dar às grandes tecnológicas um papel central na definição dos protocolos de saúde pública” sem “qualquer transparência ou responsabilidade democrática”.
Recorde-se que a aplicação recorre ao sistema Google/Apple Exposure Notification, conhecido como GAEN. A Associação relembra que Rui Oliveira, presidente do INESC TEC, reconheceu numa entrevista à Lusa que a dependência põe em causa a transparência e o controlo sobre a STAYAWAY COVID, acrescentando que esta é “uma fragilidade que não vai ser ultrapassada”.
A D3 defende que o responsável dá razão à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que tinha já tinha manifestado a sua preocupação quanto ao recurso à interface da Google e da Apple, uma vez que há uma parte fulcral da execução da aplicação que não é controlada pelos autores da aplicação ou pelos responsáveis pelo tratamento.
A CNPD afirma que a situação se torna ainda mais problemática quando consideramos que o sistema do GAEN está sujeito a modificações por decisão unilateral das empresas cujos efeitos nos direitos dos utilizadores são difíceis de antecipar.
Em linha com os argumentos da D3, a mais recente análise da Associação da Defesa do consumidor, que testou a STAYAWAY COVID antes e depois do seu lançamento oficial, revela que o sistema GAENS da solução tecnológica não está a cumprir os princípios da abertura de código e transparência.
A DECO avança que a situação “abre a porta para a possibilidade de terceiros”, em particular da Google e da Apple, “darem um uso não-declarado e indevido aos dados pessoais obtidos”. A Associação afirma que cabe à Direção Geral de Saúde e ao próprio Governo a responsabilidade pela aplicação.
“Apesar do nobre desígnio de um maior controlo da pandemia e de as autoridades portuguesas não recolherem informação dos utilizadores, não podemos recomendar a instalação da STAYAWAY COVID sem reservas. A decisão está do lado do consumidor”, sublinha a DECO.
Onde estão as partes essenciais do código?
A D3 indica que desde o início que foi prometida a publicação do código fonte da STAYAWAY COVID. É verdade que uma parte já foi publicada, no entanto, só diz respeito à interface da aplicação, pois ainda não há sinais do código do servidor.
A Associação explica que encontrou nos repositórios dos INESC TEC uma cópia antiga do template disponibilizado pelo D3PT, o projeto europeu cujo código a aplicação portuguesa reutiliza e não existe qualquer acrescento por parte do instituto ou de outra entidade nacional.
Assim, são retiradas duas conclusões. Por um lado, o repositório desatualizado corresponde ao código que está a ser usado, ou, por outro, o verdadeiro código permanece oculto, “pelo que o anúncio de que o código-fonte da aplicação é público não corresponde à verdade”, defende a D3. A parte controlada pela Apple e Google também permanece oculta.
Onde estão os sinais positivos?
“Já passou tempo suficiente para se poder olhar para os países que arrancaram com apps semelhantes, e só se pode concluir que está longe de haver qualquer semblante de sucesso”, argumenta a D3.
Relembrando uma recente entrevista de José Manuel Mendonça, presidente do Conselho de Administração do INESC TEC, ao Público, onde o responsável admitia que ainda era cedo para se falar em eficácia, a Associação afirma ainda que “está para surgir nas notícias qualquer relato promissor que valide esta forma de combate à pandemia”.
A D3 defende que os sinais vindos de outros países são “reveladores de um potencial fracasso”, exemplificando que, na França, onde 2,3 milhões de pessoas instalaram a app, foram emitidas apenas 72 notificações de contacto. Já na Alemanha, a adesão não chegava aos 25% da população.
Somos “voluntários à força”?
Apesar de os promotores da STAYAWAY COVID manifestarem-se cuidadosos no que toca à menção da eficácia, a D3 indica que o contrário se sucedeu com o Ministério da Saúde.
Luis Goes Pinheiro, Presidente do Conselho de Administração da SPMS, terá indicado que é “fundamental” que a aplicação seja descarregada e usada no dia-a-dia. Contudo, o responsável admite também que a solução tecnológica é apenas uma ajuda na luta contra a pandemia.
Assim, a D3 defende que, “na ausência de provas de eficácia, é irresponsável descrever o uso da app como «fundamental», especialmente quando a sua instalação deverá ser uma decisão voluntária e individual, idealmente ponderada com recurso a dados fidedignos, e não a apelos catastrofistas”.
A mesma contradição é apresentada num comunicado recente do gabinete do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Nele, recomenda-se às instituições académicas que “Divulguem e incentivem a utilização pela comunidade académica do sistema digital STAYAWAY COVID”, descrevendo-a como “uma ferramenta eficaz, voluntária, não discriminatória e totalmente descentralizada, orientada para evitar e monitorizar o potencial risco de contágio”. Contudo, a D3 constata que, à data do comunicado, a aplicação ainda nem tinha sido lançada.
Na apresentação pública da STAYAWAY COVID, António Costa defendeu a sua instalação como um “dever cívico”. A D3 questiona se “o seu uso é voluntário ou é um dever cívico? E novamente, ela é fundamental ou não? E se não é, por que é um dever cívico usá-la?”.
O que fica ainda por responder
Além dos quatro pontos centrais, existe um conjunto de perguntas que a D3 considera que ainda não foram respondidas devidamente. Entre elas estão a questão do custo do desenvolvimento da app e se houve ou não financiamento público no seu desenvolvimento; quais têm sido os esforços do Governo para assegurar transparência total por parte da Google e da Apple e ainda o que pode acontecer se “se concluir que a app não serviu para nada, como as experiências lá fora estão a evidenciar”.
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