Por Cláudia Pinto (*)

Em 2020, ano de confinamento, de quarentena, de teletrabalho e de telescola devido à pandemia da covid-19, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa registou um aumento muito significativo de pesquisas, com um total de 45 milhões de utilizadores (mais 7 milhões do que no ano anterior), os quais geraram 261 milhões de pesquisas – quase o dobro das que foram registadas em 2019.

No balanço geográfico, destacam-se, por país, Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e EUA, com a liderança por cidade a pertencer a Lisboa, Porto, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.

No que diz respeito ao trabalho de atualização do dicionário, o ano transato foi bastante produtivo, já que foram redigidos mais de 2200 novos verbetes, criadas perto de 6000 novas aceções e adicionados quase 9000 sinónimos e cerca de 2000 antónimos.

A análise do tráfego de pesquisas contribui para criar uma imagem do que foi este ano atípico. Um retrato possível é o que é feito através da iniciativa O Ano Em Palavras, que a Priberam mantém desde há alguns anos com a Agência Lusa e que permite passar o ano em revista através das palavras mais pesquisadas no Dicionário Priberam que estão relacionadas com os principais acontecimentos marcantes da atualidade.

Mas a análise das pesquisas no Dicionário Priberam permite-nos ir mais longe, como veremos de seguida.

As palavras mais pesquisadas

Em Portugal, mitigação, que se destacou logo no primeiro trimestre de 2020, permaneceu no topo das pesquisas o tempo suficiente para se tornar a palavra mais pesquisada do ano, sendo igualmente a palavra mais pesquisada de 2020 por todos os visitantes do Dicionário Priberam, tal foi o desejo de ver mitigada a pandemia. No Brasil, no entanto, a palavra mais pesquisada em 2020 foi relicário – e não conseguimos perceber exatamente porquê!

Nos restantes países de língua oficial portuguesa, as palavras mais procuradas no Dicionário Priberam foram resolução (Angola), jus (Cabo Verde), antecessor (Guiné-Bissau), juro (Moçambique), masoquista (São Tomé e Príncipe) e despesas (Timor-Leste).

Volta ao mundo

A partir das muitas pesquisas feitas no Dicionário Priberam por consulentes de diversas proveniências, que confirmam que nenhuma parte do mundo escapou ao tema da covid-19, encontramos várias maneiras de caracterizar o ano de 2020.

Assim, por exemplo, pode descrever-se 2020 como um ano austero (França), cinzento (México), desarmante (Roménia), horripilante (Ucrânia), instável (Costa Rica), lúgubre (Paraguai), taciturno (Gibraltar), tempestuoso (Hong Kong terá tido outras razões para esta busca, além da covid-19) ou até tumultuário (Chipre). Mas sabe melhor descrevê-lo como quilhado (Alemanha), chanfrado, marado, sacana ou mesmo cabrão (a Roménia entusiasmou-se...). Isto porque 2020 foi o ano do coronavírus, ou melhor, do dito-cujo (Hungria), mas também um ano do capeta (São Tomé e Príncipe) ou do chifrudo (Chile)!

Para alguns, 2020 foi uma hecatombe (Cabo Verde, Roménia), um cataclismo (São Tomé e Príncipe), uma catástrofe (Timor-Leste), um flagelo ou um pandemónio (Guiné-Bissau), uma intempérie (Macau), um caos (Países Baixos), uma praga (Hungria e Itália), um drama (Suriname), um fardo (Itália) ou até uma chatice (Emirados Árabes Unidos), um perrengue (Argentina, Equador, Nova Zelândia, Uruguai).

Para outros, 2020 foi um ano de desassossego e amargura (Ruanda), perda (Suíça), descontentamento (Timor-Leste), apreensão (China), condicionalismos (Paquistão), precauções (Coreia do Sul), estresse (Espanha) e até de neura (Austrália) ou chilique (Canadá, Irlanda).

E para outros ainda, 2020 foi um ano que, quase de certeza, fez alguém barafustar (Cabo Verde), atarantar-se (EUA), flipar (Roménia) ou tripar (Argélia). Foi também o ano em que, justificadamente, alguém se pode ter sentido anacoreta (Canadá, Emirados Árabes Unidos), eremita (Equador), chateado (Colômbia), jururu (Itália), carrancudo (Irlanda), piurso (Suíça) ou mesmo ao deus-dará (Espanha).

Face a este cenário de 2020, não admira encontrar buscas por resiliência, palavra já nossa conhecida de balanços anteriores e uma das mais pesquisadas em Portugal e no cômputo geral. É provável que as razões que fizeram aumentar a procura por resiliência justifiquem também as buscas por bom senso (Brasil), calma (Camboja), estoicismo (Timor-Leste) ou por benevolência (Espanha), camaradagem (Japão), compaixão (Suécia), empatia e porto seguro (Brasil).

Amor e culinária

Por ter sido o ano que foi, é natural que 2020 também tenho feito disparar as buscas por colinho e amor (Paraguai), cafuné (Colômbia), aconchego (Espanha), xodó (Vietname) e, claro, saudade (Canadá, Colômbia, Espanha, Eslovénia, Nova Zelândia, Polónia).

O confinamento de 2020 teve outras consequências, uma das quais parece ter sido uma maior dedicação à arte da culinária. Isso refletiu-se também nas buscas que quase davam para abastecer uma secção de secos e molhados (Nova Zelândia). Neste tópico, não há como não reparar nas pesquisas patê, esparguete, pimento, pastinaga, hambúrguer, picante e gasosa, pois com elas o Vietname quase compôs uma refeição (só faltou o cafezinho, mas, dessa busca, encarregou-se a República Checa).

E como as buscas por pratos culinários, alimentos, ervas e temperos, sobremesas e bebidas foram tantas e tão variadas, é natural encontrar também buscas por empanturrado (Marrocos, Suécia), gastura (Paraguai) ou apepsia (Nepal).

Outra consequência do confinamento parecer ter sido o interesse por aquelas coisas que ficaram mais difíceis de fazer em 2020, como ramboiada (Eslováquia), moina, vida airada (Luxemburgo) ou até bilhardar (Luxemburgo) e mujimbar (Chile).

Compreensivelmente, e por tudo o que se disse acima, 2020 foi um ano digno de inúmeras interjeições, como caraças (Espanha e Suíça), carago (Sri Lanca), meleca (Itália), lagarto, lagarto (Alemanha), vade-retro (Israel), poça (França) ou até porra (Hungria), para não mencionar outras duas mais cabeludas (não é, Bolívia, Finlândia, França, Hungria e Suíça?).

Aproveitando a nota mais informal acima, não podemos deixar de referir aquelas buscas mais informais, brejeiras ou safadas a que estes balanços já nos habituaram, como agarramento, paquera (Áustria), apalpão (Austrália), sarro (Colômbia); anilha (Polónia), bujão (Andorra), cu (Brasil), traseiro (Chipre); grelinho (Chile), lasca (Dinamarca), pachacha (Finlândia), pepeca (Chile, Uruguai), xenhenhém (Costa Rica), xoxota (Índia); minete (Luxemburgo), siririca (Costa Rica); pica (Bermudas); felácio (Áustria), broche (Guatemala, Irlanda, Luxemburgo), bronha (Emirados Árabes Unidos), boquete (Canadá), boqueteiro (Irlanda), brochista (Roménia); tesão (Chile), tusa (Coreia do Sul), tesudo (Suíça, Uruguai); broxar (Canadá), curtir (Ucrânia), transar (Bangladeche, São Tomé e Príncipe), ménage (Brasil) ou swing (Tailândia).

Para nos redimirmos do parágrafo anterior, terminamos numa nota mais erudita, com o levantamento de pesquisas por latinismos, que se distribuíram pelos domínios académico, como numerus clausus (Angola) e data maxima venia (Brasil), jurídico, como res judicata pro veritate habetur (Angola), habeas corpus (Chile), ipso jure (Cuba) ou post factum (Japão), filosófico, como ad augusta per angusta e sapiens nihil affirmat quod non probet (Brasil), est modus in rebus (EUA), fas est et ab hoste doceri (Hungria), ubi veritas e audentes fortuna juvat (Luxemburgo), exegi monumentum aere perennius (Polónia), aut caesar, aut nihil (Timor-Leste) ou plurima mortis imago (Venezuela), a par de buscas mais gerais, como ab hoc et ab hac (Hungria) in extremis (Moçambique), ipsis verbis e ad vitam aeternam (Países Baixos), alea jacta est (Paraguai), fama volat (Sri Lanca) ou semper et ubique (Suíça).

(*) linguista da Priberam