Foi um “evento infeliz”, como lhe chama Helder Ribeiro, que fez a Autodoc considerar Portugal como opção para fixar um centro tecnológico. O marketplace de peças e acessórios automóvel tinha em Odessa uma parte importante do suporte tecnológico ao negócio e a invasão da Rússia à Ucrânia obrigou a montar um plano B, para manter a operação a funcionar com normalidade.

Portugal acabou por surgir na lista de hipóteses. A opção confirmou-se e quando a inauguração oficial do centro tecnológico em Portugal se deu, em maio, já lá trabalhavam 100 pessoas e no horizonte já estava a intenção de fazer do país o principal tech hub da multinacional alemã.

“Do desafio de proporcionar um escritório que fosse quase um porto de abrigo para a grande quantidade de funcionários que na altura estavam principalmente em Odessa”, conta o vice-presidente de produto da Autodoc, “surgiu a oportunidade de procurar um local que oferecesse também novo talento, novas opções em termos de estratégia de recursos humanos e até de estratégia tecnológica”. O centro de Oeiras surge na convergência destas duas prioridades e de uma decisão que foi ainda mais importante, porque a empresa já preparava uma profunda transformação tecnológica.

O negócio da Autodoc divide-se em duas grandes vertentes. A original é a componente B2C, de venda direta online de peças de automóvel ao cliente final. Há um ano a companhia entrou também na vertente B2B, com a venda a oficinas, primeiro em França, agora também já na Alemanha. A ambição é fazer da empresa “o agregador tecnológico da indústria de reposição automóvel”, fechando o ciclo e ligando os vários elos da cadeia.

“O que estamos a construir em Portugal é o início dessa visão”, explica Helder Ribeiro.  As equipas locais estão a trabalhar na plataforma tecnológica que vai permitir à Autodoc desenvolver toda a experiência de cliente sobre uma mesma base, independentemente do segmento e “sem termos de partir do zero sempre que temos uma unidade de negócio nova”. Na prática, isso passa por migrar a plataforma tecnológica existente para uma arquitetura distribuída, suportada em microserviços.

“Estamos a fazer um percurso muito semelhante àquele que outras empresas como a Netflix, a Uber, ou o Facebook fizeram. Construíram todo o seu negócio sobre uma única aplicação, grande e complexa que foi crescendo ao longo do tempo, e chegaram a um momento em que perceberam que tinham de evoluir para algo mais escalável”, compara Marco Costa, vice-presidente de engenharia de produto.

Face à base tecnológica que a Autodoc trouxe da fundação, em 2008, a arquitetura distribuída dá espaço a cada equipa para construir os seus próprios serviços a diferentes ritmos, mas sempre com a garantia que as várias peças do puzzle comunicam entre si.

A migração para este tipo de arquiteturas é uma tendência global e em Portugal há uma presença forte de empresas a fazê-lo, o que significa que a base de conhecimento dos recursos humanos nestas áreas é grande e a experiência também. A disponibilidade desse talento foi um fator determinante na escolha do país e nos passos dados a seguir, em termos de origem dos recursos a contratar para operar esta mudança.

O fator custo não foi determinante na escolha de Portugal, assegura Hélder Ribeiro. Continua a haver uma diferença relevante no preço dos profissionais especializados nestas áreas, na comparação com os Estados Unidos ou com os principais países europeus. Já na comparação com o Leste da Europa, Portugal chega a ser menos competitivo no preço, mas ganha vantagem na experiência dos profissionais disponíveis.

Veja na galeria as instalações da Autodoc em Oeiras e os responsáveis entrevistados pelo SAPO TeK

O escritório em Portugal tinha já 100 pessoas quando foi anunciado. O plano até final deste ano é contratar mais 100, para as diferentes unidades. Nas áreas de engenharia devem ser contratadas mais 30 pessoas em 2023, um número que é para dobrar em 2024.

A abertura de outros centros em Portugal é também uma opção, que a Autodoc continua a considerar e que foi assumida logo quando a companhia apresentou o primeiro investimento em Portugal, mas para já não tem data para acontecer.

A empresa diz que tem estado a recrutar em todo o país, mas o peso dos modelos híbrido e remoto não faz da localização física uma prioridade para aumentar a equipa. Acontecerá provavelmente numa fase seguinte, quando já existir um número relevante de colaboradores noutra zona do país.

Tecnologia e produtos desenvolvidos em Portugal vão mudar o quê para quem compra na Autodoc?

Para já, o escritório de Oeiras é o ponto de confluência de colaboradores portugueses e de outras nacionalidades, contratados a partir de Portugal, mas também de quem está em escritórios da Autoc noutras geografias e prefere trabalhar em Portugal. Helder Ribeiro admite que há vários processos de relocalização apoiados pela empresa em curso.

O responsável reconhece que atrair talento para trabalhar nas tecnologias que a Autodoc está a explorar nesta fase de transformação tem desafios. A concorrência são tecnológicas de referência e empresas mais reconhecidas no mercado de emprego em Portugal, onde a Autodoc acabou de chegar. Vale a capacidade que Portugal tem tido para atrair talento das mais diversas geografias, mas já com mais reticências dos candidatos do que num passado recente.

“A vantagem competitiva que tínhamos do sol e uma cabana está a deixar de existir, porque a cabana está cada vez mais cara”, brinca Helder Ribeiro, enquanto defende a necessidade de políticas de retenção das empresas que investiram no país, que olhem para o impacto negativo do preço da habitação e dos impostos na forma como Portugal compara com outras geografias.

Para quem compra peças ou acessórios para uma carro ou uma mota no site da Autodoc, os resultados da transformação tecnológica que está a ser conduzida a partir de Portugal vão surgir ao longo do tempo, com uma experiência de navegação melhorada e novos serviços.

Até final do ano decorre o lançamento faseado de uma nova tecnologia front-end, que vai aumentar a velocidade de navegação no site até 10 vezes. No futuro, a ligação das várias áreas de negócio e serviços na mesma plataforma tecnológica vai potenciar o surgimento de ofertas cruzadas. Por exemplo, hoje pode comprar um farol para o carro no site da Autodoc, usar os tutoriais de vídeo da empresa para aprender a montá-lo sozinho, ou levá-lo a um mecânico para fazer o serviço. No futuro, provavelmente será possível comprar o farol e o serviço de montagem na oficina, sem chegar a tocar na peça, mas conhecendo de antemão todos os custos.

A Autodoc está presente em oito países mas opera em toda a Europa através das suas lojas online, onde existem mais de 5 milhões de produtos listados, para automóveis, motos e pesados. No ano passado a companhia alcançou vendas de mais de 1,1 mil milhões de euros.