Nos últimos anos, a transformação digital chegou à Saúde e o campo da saúde mental não ficou de fora. Tal como noutras áreas, a pandemia da COVID-19 foi um ponto importante de viragem, mas tecnologias como a realidade virtual e a inteligência artificial farão ainda mais diferença, na opinião de Tom Van Daele, psicólogo clínico e investigador na área da eMental Health.

Integrando o painel de oradores convidados do Congresso Ibero-americano de Psicologia, que acontece nos próximos dias 26 e 27 de setembro, Tom Van Daele considera que a crise pandémica desencadeou uma reavaliação do uso da tecnologia na área da saúde, antes encarada com ceticismo por muitos profissionais - e pacientes -, ampliando as formas de atendimento e abrindo novas possibilidades no modo como os cuidados são oferecidos.

“Antes da pandemia, só um em cada quatro psicólogos tinha alguma experiência com consultas online. Com o lockdown esse número saltou para perto de 90% em poucas semanas”

Van Daele destaca que a transição não foi isenta de desafios: muitos profissionais não receberam treino adequado para darem consultas online, o que inicialmente gerou alguma preocupação sobre a qualidade do atendimento. Apesar disso, considera que os resultados foram no geral positivos, com os psicólogos a conseguirem manter um padrão alto de serviço.

Com o fim das restrições, as consultas online diminuíram substancialmente, num regresso ao formato presencial “que oferece vantagens inegáveis em termos de conexão humana”, mas, entretanto, a atitude tinha mudado substancialmente.

Para o investigador, a pandemia ajudou a quebrar o estigma em redor da tecnologia, tornando tanto psicólogos como pacientes mais propensos a explorarem ferramentas como aplicações e plataformas digitais, especialmente em situações mais urgentes, quando a distância é um obstáculo.

Na opinião de Tom Van Daele, as aplicações e os websites têm a vantagem da acessibilidade e de chegarem a mais pessoas, que as podem usar de forma anónima. Por outro lado, há desafios como a dificuldade em encontrar ferramentas com qualidade e a alta taxa de desistência dos utilizadores.

Tom Van Daele
Tom Van Daele Tom Van Daele créditos: Josefien Tondeleir

Embora as inovações tecnológicas sejam promissoras para o futuro da saúde mental, Van Daele ressalta que não estão isentas de desafios, nomeadamente preocupações éticas de privacidade e segurança, especialmente tendo em conta o uso de grandes quantidades de dados pessoais.

“É importante ser cauteloso, especialmente hoje em dia com os chatbots que realmente nos encorajam a escrever muitas coisas, que nos pedem para conversar e partilharmos coisas pessoais”.

O investigador acredita que os governos têm um papel crucial na regulamentação desses serviços, destacando que muitas aplicações de saúde mental são classificadas como dispositivos médicos, o que exige altos padrões de segurança, o que nem sempre acontece. "Cabe aos governos garantirem a qualidade técnica desses serviços e a aplicação eficaz da lei ", enfatiza.

Van Daele reconheceu ainda a preocupação com a exclusão digital e afirmou que, idealmente, as intervenções digitais devem complementar e não substituir os serviços presenciais. Se as consultas presenciais forem substituídas “aí corre-se o risco de criar uma divisão, deixando de fora aqueles que não têm acesso ou competências tecnológicas”. Para o investigador, o ideal está em transformar as intervenções digitais numa camada adicional, melhorando o que já existe no sistema de saúde.

Realidade virtual, inteligência artificial e machine learning ao serviço da saúde mental

Para Tom Van Daele o recurso a tecnologias como a realidade virtual (VR), poderá ser disruptivo, com o investigador a apontar a sua utilização na terapia de traumas severos, pela capacidade de recriação de ambientes imersivos. “A RV permite uma exposição gradual e controlada a memórias traumáticas, algo que seria impossível de outra forma”.

No campo da RV também há desafios, nomeadamente técnicos, pela falta de formação dos psicólogos para trabalharem com estas ferramentas. “Nem sempre os psicólogos são proficientes em novas tecnologias”.

Tom Van Daele diz ver grande potencial na inteligência artificial como “um meio de melhorar tudo em redor das consultas reais”. Considera que o foco excessivo na IA como substituto dos psicólogos desvia a atenção da diferença que a tecnologia pode realmente fazer já no curto prazo, nomeadamente reduzir a carga administrativa, escrever relatórios e criar exposições para colegas.

Será também importante para explicar o que se passa aos pacientes, “ajudando-os a entender o que está escrito ou é dito, outro dos grandes desafios atuais na assistência à saúde mental”.

A personalização será outro ponto importante. Para Van Daele, a IA poderá contribuir para a personalização dos tratamentos, em detrimento da atual adoção do modelo “one size fits all.

"A IA poderá dar-nos uma visão mais clara sobre os tratamentos mais eficazes para cada indivíduo, com base nos dados que recolhemos sobre a sua saúde mental", explica, numa espécie de “cuidados de saúde mental personalizados”.

“Não será o computador que nos vai dizer o que é preciso, mas será o computador a dar-nos mais opções. Talvez sugira alguns cenários que nem considerámos antes”.

Olhando para o futuro, o investigador acredita que a combinação de IA e machine learning será crucial para o avanço da saúde mental digital, prevendo que tais tecnologias possam ajudar a melhorar o uso de dispositivos ou ferramentas já existentes, como a realidade virtual. Por exemplo, configurar um ambiente de RV hoje em dia toma muito tempo: com a IA basta um prompt para descobrir o ambiente de RV ideal a definir e esse ambiente é gerado no momento. Isso tira potencialmente muito esforço e pode ajudar a alavancar o uso dessa tecnologia, sublinhou.

 “Os psicólogos querem passar o máximo de tempo possível com as pessoas, não passar tempo a aprender ou a tentar usar a tecnologia. A inteligência artificial pode tornar tudo mais intuitivo e fácil”, defendeu.

A verdadeira revolução digital na saúde mental não virá de ferramentas que substituem o contacto humano, mas sim de tecnologias que tornam o processo mais eficiente, permitindo que os profissionais se concentrem no que de fazem de melhor: cuidar de pessoas.