As pesquisas relacionadas com a saúde já dominam grande parte das perguntas ao “Dr. Google”, que é muitas vezes o primeiro recurso de quem tem dúvidas, mas o potencial da tecnologia, e da Inteligência Artificial, na transformação da prática da medicina é muito mais vasto.

Fazemos medicina da mesma forma que há 40 anos. Continuamos a desperdiçar o nosso tempo a fazer coisas que não são de médicos, em vez de o aplicar no que pode trazer valor para o doente”, explica Pedro Gouveia, cirurgião na Fundação Champalimaud e investigador na área de realidade imersiva, que diz que “existem agora melhores métodos de imagem e melhores fármacos, mas que a jornada do doente pouco ou nada se modificou”.

A mudança pode ser feita através da utilização da tecnologia, e os modelos de Inteligência Artificial Generativa são vistos como aliados numa transformação que pode provocar ganhos imediatos. Para isso defende que é importante começar a incluir nos cursos de medicina as ferramentas para que os alunos tenham os primeiros contactos com a tecnologia e percebam o seu potencial, criando pontes com a engenharia e a biotecnologia.

Os primeiros passos já se começam a dar em Portugal com a introdução destes conteúdos nos currículos e a Faculdade de Medicina de Lisboa, em colaboração com a Fundação Champalimaud, está a promover um curso curto de Introdução Prática à Inteligência Artificial em Medicina. Durante uma semana, 16 alunos tiveram aulas na Fundação onde, de uma forma prática, puderam fazer a primeira abordagem a esta área. Na abordagem às várias áreas participaram investigadores da Fundação Champalimaud, como  Tiago Marques e João Santinha, mas também convidados da Google e Microsoft. 

“Mais do que exemplificar através da teoria, o objetivo é colocá-los a mexer, numa fase de descoberta”, explica Pedro Gouveia. “Não é esperado que no final desta semana consigam ser programadores, mas compreender o problema, a linguagem, e perceber melhor que quando se juntar um médico e um engenheiro, para criar um produto para ajudar o doente, consigam falar uma linguagem comum".

As vagas para o curso ficaram rapidamente esgotadas, o que mostra o interesse dos alunos de medicina por esta área, apesar dos desafios que são diferentes das outras matérias lecionadas. A programação em Python, as ferramentas Jupyter e Google Colab, a introdução aos algoritmos de Inteligência Artificial e a forma como podem ser aplicados na Medicina, com exemplos de sucesso, fazem parte dos temas abordados ao longo de uma semana intensa, que foi a preparação para um trabalho final a entregar até 17 de março. Foi criado um website e um repositório no GitHub para dar suporte ao curso e ao desenvolvimento dos projetos.

Os alunos e professores tiveram também acesso, pela primeira vez em Portugal, ao Med-PaLM, o modelo de linguagem desenhado pela Google especificamente para a área da medicina e que ainda está a ser usado num formato muito limitado.

O acesso foi garantido pela Google, com uma licença disponibilizada pela empresa RealLife.  Sofia Marta, Country Manager da Google Cloud Portugal, explicou ao SAPO TEK que “estamos a tentar posicionar Portugal como pioneiro na introdução destas tecnologias e introduzir isto no currículo de Medicina é espetacular”. A responsável diz que já há outra entidade a usar o Med-PaLM em Portugal, que começou também nos últimos dias, e que sempre que exista interesse a empresa pode tentar desbloquear esta experimentação.

Para Pedro Gouveia este é um novo mundo para a Medicina. “Com a introdução de forma mais generalizada da tecnologia de transformers e os modelos de linguagem, com o ChatGPT, o Med-PaLM, o Gemini e outros que surgiram, vamos de facto refundar um novo braço armado da medicina, que introduz a tecnologia sob a forma de inteligência artificial generativa e que vai penetrar na sociedade e na medicina para provocar ganhos imediatos, e outros de média e longa duração para o doente, para o médico e para os sistemas de saúde”, explica.

Estas ferramentas já trazem benefícios de eficiência e resultados noutras indústrias e o cirurgião diz que na Medicina a implementação ainda é feita de forma lenta, o que se justifica pela regulamentação mas que precisa também de adaptação por parte do sistema de saúde e dos profissionais. E isso começa também pela formação, com os alunos de Medicina a integrarem outras áreas no currículo, como a física e a matemática, ou a programação. “Se vamos trabalhar com tecnologia, como é que um aluno de medicina e um futuro médico podem usar de forma eficiente a tecnologia se não tiverem os conhecimentos para a aplicar?”, questiona.

A Universidade do Texas introduziu no ano passado uma licenciatura de duplo grau de Medicina e Inteligência Artificial, e este é apontado como um bom exemplo que serviu de inspiração a este curso que foi realizado em parceria entre a Faculdade de Medicina de Lisboa e a Fundação Champalimaud.

Acho que o ecossistema de saúde se vai modificar. Cada vez temos mais engenheiros biomédicos nos hospitais, a Faculdade de Medicina de Lisboa, através do Centro Tecnológico Reynaldo dos Santos, já tem aulas de engenharia para estudantes de engenharia biomédica do Instituto Superior Técnico. Estas pontes já se começam a fazer”, afirma. Para Pedro Gouveia, estas colaborações entre os vários parceiros “contribuem para criar soluções”, lembrando que “num país pequeno, ou abordamos estas questões de forma colaborativa multimodal ou cada um de nós sozinho não consegue transformar”.

A ideia é que os médicos possam também ser protagonistas ativos no desenvolvimento das soluções, em colaboração com os engenheiros e com outros profissionais, dentro de um ecossistema para melhorar a saúde. A Fundação Champalimaud tem uma série de projetos onde se promove a ligação entre as várias áreas do conhecimento, entre os quais se contam iniciativas que estão a ser promovidas pelo Digital Surgery Lab, e o MetaBreast, que conseguiram financiamento do PRR e já estão a dar resultados no terreno.

Meta humanos na medicina e o modelo de IA da Google para áreas médicas

Durante uma das aulas a que o SAPO TEK assistiu, foi apresentado o modelo Med-PaLM da Google, que ainda está a ser usado só nos Estados Unidos para clientes autorizados. Para a utilização neste curso foi conseguido um acesso privilegiado, com uma autorização especial pela Google em Portugal, com uma licença da Real Life Technologies que também está a trabalhar soluções para a área médica.

Esta é uma das áreas de aposta da Google, como explica Sofia Marta, que lembra que Sundar Pichai declarou ainda em 2016 a Google como uma “Ai first company”. “Estas tecnologias têm um potencial tremendo, ainda não conseguimos imaginar o contributo para o futuro da humanidade”, explicou.  

Os modelos são cada vez mais multimodais, recebendo informação de vários dispositivos, com a interpretação de imagens e áudio, e isso tem grande aplicação na área da saúde, onde os médicos lidam com vários elementos de diagnóstico e até dispositivos que recolhem dados da condição física dos pacientes.

Luis João, responsável pelo sector público na Google Cloud em Portugal, mostrou vários exemplos da forma como a tecnologia Med-PaLM pode ser usada e da diferença em relação aos modelos disponíveis ao público, como o Gemini. A geração de resumos, ou de notas de alta, a revisão do tratamento do paciente e a possibilidade de criar interfaces específicos que libertam o médico das tarefas mais rotineiras, foram alguns dos casos mostrados aos alunos do curso.

Pedro Gouveia sublinhou a importância de poupar tempo com estas tarefas. “Os médicos trabalham muitas horas e por vezes perdem a capacidade de pensar”, explica, dizendo que estas ferramentas podem simplificar e melhorar a operacionalização de tarefas, para que se possam dedicar ao que tem mais valor. “Podemos criar um meta humano que pode transmitir informação de determinados cuidados ao paciente, como procedimentos pré-operatórios e em vez de perder 10 minutos a explicar, a mensagem pode ser transportada para casa do doente e ser vista com mais atenção e de forma mais efetiva”.

As aulas do primeiro curso já terminaram e agora os alunos estão a finalizar o trabalho final, para avaliação, e tudo indica que esta é uma iniciativa que vai ter continuidade.