Portugal tem referido pelo papel pioneiro que teve na adoção de veículos elétricos e na criação de uma infraestrutura de mobilidade elétrica. Porém, o modelo ainda em vigor, com a Mobi.E a atuar como entidade gestora centralizada e a obrigatoriedade de contratos com comercializadores tornou-se num constrangimento ao desenvolvimento contínuo desta rede, especialmente agora que o setor amadureceu e o número de veículos elétricos em circulação aumentou significativamente.

Este sistema tem causado constrangimentos, sobretudo aos utilizadores que têm dificuldade em perceber onde podem carregar os automóveis e diferenciar os custos, entre os preços da energia e as taxas aplicadas pelos operadores.

Agora o Governo avançou com uma proposta de Regime de Mobilidade Elétrica (RJME), que irá substituir o anterior Decreto-Lei (39/2010), ainda do tempo do Governo de José Sócrates. A proposta esteve em consulta pública entre 27 de fevereiro e 29 de março, tendo sido aprovado em Conselho de Ministros na semana passada, a 31 de julho de 2025, no âmbito da Reforma do Estado.

Para perceber o impacto das novas medidas, e implicações para os utilizadores, preparámos um explicador sobre os principais pontos do novo Regime, que pode consultar abaixo. Se tiver alguma pergunta adicional pode enviar email para redacao@teknoticias.pt

Quais os objetivos gerais do novo Regime de Mobilidade Elétrica (RJME)?

Simplificando a resposta, na essência os objetivos gerais do novo regime são os de:

  • Simplificação: O regime visa tornar o processo de carregamento de veículos elétricos "tão fácil como ir a uma bomba de gasolina", eliminando complexidades e barreiras para o utilizador.
  • Liberalização: Procura-se promover uma maior concorrência e facilitar a entrada de novos operadores no setor, o que se espera que dinamize o mercado.
  • Inovação e Digitalização: O novo enquadramento legal pretende estimular o desenvolvimento tecnológico e a digitalização do setor da mobilidade elétrica, incentivando soluções mais avançadas e eficientes.
  • Transparência: Um dos pilares do regime é garantir que os utilizadores recebam faturas claras e percetíveis, e que os preços sejam facilmente comparáveis entre diferentes postos de carregamento.
  • Alinhamento Europeu: A decisão está em conformidade com o Regulamento Europeu AFIR (Regulamento (UE) 2023/1804), que estabelece as condições para a criação de uma infraestrutura de combustíveis alternativos na União Europeia e impõe a obrigatoriedade de pagamentos ad hoc. Este alinhamento não só garante a compatibilidade da infraestrutura portuguesa com os padrões europeus, facilitando as viagens transfronteiriças para proprietários de VE, como também fortalece a posição de Portugal como um destino atrativo para o investimento internacional no setor da mobilidade elétrica. A conformidade com o AFIR prepara o mercado para futuras diretivas da UE, minimizando a necessidade de revisões regulatórias disruptivas.

Quais as principais mudanças e objetivos do novo regime de mobilidade elétrica?

O primeiro é a eliminação da obrigatoriedade de contratos com comercializadores. Até agora, ara carregar o seu veículo num posto público, os condutores (utilizadores finais) necessitavam de ter um contrato prévio com um comercializador de electricidade para mobilidade (CEME).

Com o fim desta obrigatoriedade, torna-se possível fazer o pagamento diretamente nos postos de carregamento, podendo estes ser através de cartão bancário, QR Code ou MB Way. Todos os postos com potências igual ou superior a 50 kW são agora obrigados a aceitar pagamento com cartão bancário no local.

Os postos deixam de estar ligados a uma entidade gestora central, como era o caso da Mobi.e, eliminando assim intermediários. Desta forma, incentiva-se a criação de maior concorrência no mercado e, com a redução das taxas pagas pelos utilizadores, prevê-se uma descida nos preços de carregamento.

O novo regime prevê igualmente a apresentação obrigatória dos preços (por kWh) praticados por cada posto, de forma semelhante ao praticado nos postos de combustíveis. Ao mesmo tempo, esta liberalização da rede permite eliminar anteriores limitações geográficas e contratuais, já que todos os utilizadores passam agora a poder carregar em qualquer posto, independentemente do fornecedor de energia.

Veja o quadro comparativo

Quadro comparação novo regime mobilidade
Quadro comparação novo regime mobilidade

Há diferenças reais nos preços?

Embora não tenham sido fornecidos valores específicos ou percentagens reais de redução dos preços, com a redução das taxas em vigor, podemos simular valores tendo em conta a forma como os custos atuais são compostos.

Atualmente, um carregamento na rede pública Mobi.E é composto por quatro parcelas distintas, a Parcela de Energia (CEME), que é o custo da eletricidade fornecida pelo comercializador de eletricidade, a Parcela de Utilização do Posto (OPC), que é o custo cobrado pelo operador do posto, a Tarifa EGME, que cobre os custos da Entidade Gestora da Mobilidade Elétrica (Mobi.E) e a taxa de IVA de 23% sobre o valor final.

Simulando o carregamento de uma bateria de 64 kWh num posto de carregamento público de baixa tensão (BT) em horário fora de vazio, este seria composto pelos seguintes valores:

  • Tarifa de Energia (CEME): Assumindo um valor médio de 0,1480 €/kWh.
    • 64 kWh * 0,1480 €/kWh = 9,47 €
  • Tarifa de Acesso às Redes (TAR - BT, fora de vazio): 0,1170 €/kWh.
    • 64 kWh * 0,1170 €/kWh = 7,49 €
  • Imposto Especial sobre o Consumo (IEC): 0,001 €/kWh.
    • 64 kWh * 0,001 €/kWh = 0,06 €
  • Subtotal Parcela de Energia: 9,47 € + 7,49 € + 0,06 € = 17,02 €
  • Tarifa do Operador do Posto de Carregamento (OPC): Este valor varia muito. Para esta simulação, vamos assumir um custo hipotético de 0,05 €/kWh pela utilização do posto.
    • 64 kWh * 0,05 €/kWh = 3,20 €
  • Tarifa EGME (fixa por carregamento em 2025): 0,31 €/carregamento.
    • 0,31 €
  • Subtotal antes de IVA: 17,02 € (Energia) + 3,20 € (OPC) + 0,31 € (EGME) = 20,53 €
  • IVA (23%): 20,53 € * 0,23 = 4,72 €

Custo Total Estimado no Modelo Atual (Mobi.E): 20,53 € + 4,72 € = 25,25 €

Através da aplicação do novo regime, as taxas atualmente cobradas não serão essencialmente eliminadas, mas serão integradas para um valor único, à semelhança do que acontece com os combustíveis fósseis.

A Tarifa de Energia cobrada pelo CEME desaparecerá, porém, o custo da eletricidade consumida continuará a ser paga. O mesmo acontecerá à Tarifa de Acesso às Redes, que desaparecerá enquanto parcela, mas o custo será integrado ao custo da eletricidade consumida no valor final do carregamento.

Segundo os dados, a Tarifa do Operador do Posto de Carregamento continuará a existir, mas espera-se que o seu valor venha a reduzir com o aumento da concorrência. Já a Tarifa EGME, a que é paga à Mobi.E, essa sim, será eliminada. As parcelas correspondentes a impostos ao Estado, o IEC e o IVA, esses permanecerão presentes às taxas atualmente em vigor.

Ou seja, na realidade, dos 25,25€ que simulámos para o carregamento de uma bateria de 64 kW em circunstâncias ideais, neste momento apenas se consegue confirmar que esse valor irá ser reduzido para 24,94€, resultado da eliminação da Taxa EGME, que corresponde a 0,31€ por carregamento. Tudo o resto é, até ao momento, pura especulação.

Oportunidades para novos instaladores e operadores

Este novo regime abre a porta a possíveis oportunidades de negócio, uma vez que foi eliminada a licença obrigatória anteriormente necessária para a instalação de postos de carregamento. Isto permitirá reduzir significativamente a burocracia, assim como o tempo de implantação de novas estações de carregamento.

Os Operadores de Postos de Carregamento (OPC) ganham agora maior autonomia para gerirem os seus postos, uma vez que com o fim da obrigatoriedade de estarem ligados a uma rede única gerida pela Mobi.E, torna-se possível utilizar energia de autoconsumo diretamente no local de carregamento, como a energia proveniente de painéis solares.

Espera-se que com esta liberalização do mercado, a rede de carregamento em território nacional possa crescer, assim como a concorrência entre operadores. Os novos postos de carregamento em áreas concessionadas, como as autoestradas, serão atribuídos através de concursos públicos obrigatórios, estimulando assim a competitividade.

Igualmente importante será a alteração do modo de pagamento dos postos. Qualquer posto de carregamento com potência igual ou superior a 50 kW terá de disponibilizar um terminal de pagamento direto com cartão bancário. Já os postos com menor potência devem, no mínimo, permitir métodos eletrónicos de pagamento alternativos, como o sistema MB Way.

E o caso da rede Tesla Supercharger?

A rede Tesla é um caso particular, visto ser uma rede anteriormente exclusiva para reforçar a venda de veículos eléctricos de um só fabricante, e que tinha como principal objetivo dar confiança aos condutores de Teslas, e ao mesmo tempo compensar a escassez de infraestruturas públicas.

Desde o primeiro posto inicialmente inaugurado em 2017, o Supercharger em Fátima, que a implementação da rede Supercharger em Portugal estagnou, sendo apontadas como principais razões a elevada burocracia administrativa, além de problemas relacionados com a ligação à rede elétrica e a incompatibilidade do modelo de negócio com as limitações impostas pela rede Mobi.E.

Segundo informações prestadas pela UVE (Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos), estão em funcionamento os seguintes postos Tesla:

  • Alcácer do Sal: 10 postos de 150 kW
  • Alcantarilha: 8 postos de 150 kW
  • Loulé: 8 postos de 250 kW
  • Fátima: 14 postos de 150 kW
  • Guarda: 8 postos de 150 kW
  • Mealhada: 20 postos de 150 kW
  • Montemor‑o‑Novo: 8 postos de 150 kW
  • Ribeira de Pena: 10 postos de 150 kW

Apesar desta estagnação, a Tesla pretende, agora com a implementação do novo RJME, construir novos postos da rede Supercharger, que terão como principal vantagem utilizarem carregadores de nova geração, capazes de debitar até 250 kW de potência.

Estão previstos 12 postos em Matosinhos (MAR Shopping), 8 postos em Castelo Branco (Fórum Castelo Branco), em Lisboa (próximo de São Domingos de Rana) e outras localidades ainda por anunciar, como Lisboa, Portimão, Leiria, Porto e Guimarães. No total, a Tesla planeia inaugurar 100 novos postos nesta nova fase de expansão da sua rede Supercharger.

Como reagiu o mercado às novas propostas?

Numa primeira fase, o mercado está a reagir de forma positiva às alterações propostas pelo RJME porém existem dúvidas sobre os efeitos reais que as mesmas irão ter sobre o mercado, e os consumidores.

Para a ARAC - Associação Nacional dos Locadores de Veículos, as alterações estabelecidas pelo novo regime são algo que a associação “andava a pedir há um ano”, e que será igualmente muito positivo para o mercado do Rent-a-Car. Porém, Joaquim Robalo de Almeida, Secretário-geral da ARAC avisa, numa entrevista à Publituris, que o período de transição, superior a um ano, é “muito longo”.

Já o clube de utilizadores de veículos Tesla em Portugal diz estar muito satisfeito com a chegada do novo regime de mobilidade elétrica, e que o mesmo representa um passo importante para os utilizadores de veículos Tesla, pois permitirá a abertura de mais postos Supercharger, assim como a expansão dos já existentes. Permitirá igualmente facilitar a abertura da rede Supercharger a outras marcas, tal como já acontece no resto da Europa, e pelo mundo fora.

No que toca a operadores de postos de carregamento, surgem mais dúvidas quanto às alterações impostas pelo RJME. No geral, estas mudanças são vistas como algo “claramente positivo”, conforme afirmou Ricardo Pacheco, responsável em Portugal da Iberdrola BP Pulse, e José Maria Sacadura, Diretor-geral da Powerdot. Só Daniela Simões, CEO da Miio e Ricardo Soares, Diretor-geral da Go.Charge revelam ter “preocupações relevantes”, defendendo a implementação de “mecanismos sólidos de regulação e coordenação” a acompanhar as mudanças, segundo afirmaram numa entrevista ao jornal ECO ainda antes de ser conhecida a proposta final.

Também a UVE - Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos reagiu oficialmente ao anúncio do novo regime, afirmando que “a atual proposta é uma boa iniciativa”, mas que a mesma “necessita de várias melhorias antes de ser publicada.” Segundo a associação, existe um “problema de transparência”, e que “a facilidade de um utilizador saber quanto vai pagar, o surgimento de tarifas de fácil entendimento para o utilizador e outros problemas, não se resolvem com este projeto de decreto-lei.”