A adoção dos veículos elétricos (BEV) continua a crescer em todo o mundo, e Portugal não foge à regra, com os números da ACAP (Associação Automóvel de Portugal) a registarem um crescimento de 27,2% na venda de automóveis ligeiros de passageiros durante os primeiros sete meses do ano, comparativamente ao período homologo.

Porém, apesar deste crescimento, os veículos elétricos ainda não dominam as vendas de automóveis novos, ao contrário do que acontece em mercados como os nórdicos. Segundo os dados da ACAP, nos primeiros sete meses do ano, os BEV contabilizaram para um total de 20,2% do total das matrículas novas durante esse período.

Quadro novas matrículas 2025
Quadro novas matrículas 2025 Quadro novas matrículas 2025

Uma das principais razões para que os BEV ainda não dominem ainda o top de vendas está associada ao tema da ansiedade de autonomia, vulgarmente apelidada de range anxiety. Este termo designa o receio de ficar sem bateria antes de chegar ao destino ou a um posto de carregamento.

Embora esta seja uma preocupação legítima, é na realidade uma preocupação que faz cada vez menos sentido tendo em conta os avanços recentes aplicados nas tecnologias utilizadas pelas baterias, pelas plataformas de cada veículo, e na própria rede de carregamento existente, tornando esta preocupação em algo mais associado a uma perceção psicológica do que a limitações reais da tecnologia atual.

De onde vem a ansiedade de autonomia?

Apesar de parecer recente, a ansiedade de autonomia acompanha o mercado automóvel desde os seus primórdios. No início do século XX, os primeiros condutores de carros a gasolina enfrentavam a mesma preocupação, onde a escassez de postos de abastecimento tornava qualquer viagem um risco.

Porém, o termo range anxiety só surgiu no final da década de 90, durante os ensaios do projeto EV1 da General Motors, um BEV equipado com uma bateria de níquel-hidreto metálico de apenas 26,4 kWh, que lhe conferia uma autonomia de 229 km. Comparado a um depósito cheio de gasolina, esta margem não era suficiente para inspirar confiança nos condutores habituados à conveniência das bombas de combustível.

Modelos elétricos iniciais como o Nissan Leaf ou o Mitsubishi i-MiEV (e os seus “clones” Peugeot iOn e Citroën C-Zero) reforçaram esta perceção, com autonomias reais inferiores a 150 km, e com tempos de carregamento excessivamente longos.

Hoje, essa realidade mudou. Automóveis como o BYD Tang ultrapassam os 530 km de alcance homologado WLTP (até 681 km em ciclo urbano), e mesmo propostas mais acessíveis, como o Hyundai INSTER, já superam facilmente os 300 km reais, valor adequado para a grande maioria dos trajetos diários.

BYD Tang
BYD Tang BYD Tang créditos: BYD

A dimensão psicológica

Apesar das melhorias, a ansiedade de autonomia persiste como um fenómeno psicológico. O medo de ficar sem energia toca num instinto humano básico de perda de controlo e incerteza. Estudos mostram que muitos condutores começam a ficar apreensivos quando o nível da bateria desce para 50 ou 60%, mesmo que o veículo ainda disponha de carga suficiente para várias centenas de quilómetros.

Esta apreensão reflete-se numa comparação inconsciente com um veículo a gasolina, onde um depósito vazio pode ser reabastecido em poucos minutos, ao passo que um carregamento ainda é mais lento e menos conveniente, obrigando a um maior planeamento da viagem.

engarrafamento carros trânsito
engarrafamento carros trânsito Trânsito intenso créditos: pixabay

Que papel pode ter a tecnologia de baterias?

Grande parte do esforço da indústria automóvel tem-se concentrado em resolver esta questão através da evolução das baterias e da infraestrutura de carregamento. As atuais baterias de iões de lítio oferecem densidades energéticas muito superiores às de há apenas uma década, permitem maior longevidade e conseguem suportar carregamentos rápidos. Graças a estes avanços, percursos muito longos, que antes exigiam planeamento exaustivo, são hoje viáveis com poucas paragens intermédias.

Além disso, os veículos elétricos passaram a integrar sistemas de navegação capazes de calcular rotas com base na autonomia remanescente e na localização de postos de carregamento. Aplicações móveis como a Miio, ou até o Google Maps complementam este processo, ajudando no planeamento do percurso tendo em conta a autonomia e a disponibilidade de carregadores em tempo real.

Miio
Miio

A próxima fronteira: baterias de estado sólido

Se as baterias de iões de lítio são o presente, as baterias de estado sólido são apontadas como o futuro. Estas diferenciam-se por substituírem o líquido (ou gel) utilizado como eletrólito nas convencionais baterias de iões de lítio por um eletrólito sólido, que pode ser de vidro, acabamento cerâmico ou de polímeros sólidos.

Através desta substituição, é possível reduzir o espaço ocupado pelo eletrólito líquido, aumentando assim a densidade energética de cada célula, o que por sua vez permitirá diversos ganhos, como a já referida maior densidade, o que por sua vez permitirá uma maior capacidade ocupando o mesmo espaço, maior tempo de vida devido à menor degradação da capacidade ao longo do tempo, e aumento das velocidades de carregamento.

A segurança é outra importante vantagem das baterias sólidas, pois devido à sua estrutura sólida, estas serão menos suscetíveis a sobreaquecimento e incêndios, problemas que são muito comuns nas baterias de iões de lítio quando são ligeiramente danificadas.

Fabricantes como a Hyundai, Kia, Toyota, Nissan, Honda, BMW, Mercedes-Benz e o grupo Stellantis estão a investir fortemente nesta tecnologia, e serão dos primeiros fabricantes “tradicionais” a disponibilizarem ofertas com esta tecnologia. A Toyota, por exemplo, afirma estar a preparar baterias sólidas capazes de oferecer até 1.200 km de autonomia até ao final da década, enquanto a Hyundai já inaugurou linhas piloto de produção.

A BMW e a Mercedes-Benz também trabalham em parcerias com fabricantes especializados. A Mercedes-Benz, juntamente com a Factorial Energy, estão a desenvolver uma solução que será capaz de oferecer até 450 Wh/kg até 2030, o que corresponde ao dobro da densidade de uma bateria atual, como as Panasonic 2170 NCA utilizadas pela Tesla, que oferecem uma densidade de 260 Wh/kg.

Bateria Sólida Mercedes-Benz
Bateria Sólida Mercedes-Benz Bateria Sólida Mercedes-Benz créditos: Mercedes-Benz

Mas não pense que a China está a ficar para trás, bem pelo contrário. Fabricantes como a CATL estão igualmente a apostar na tecnologia de baterias de estado sólido, mas estas estão mais focadas nas capacidades de carregamento rápido. Até ao momento, a CATL já demonstrou, com a nova bateria Shenxing Plus, ser possível recuperar 560 km de autonomia em apenas 10 minutos, mas mesmo sem recorrer a tecnologias de estado sólido, uma bateria de 70 kWh do tipo NMC (Lítio Níquel Manganês Cobalto) já consegue carregar 60% da sua carga em nove minutos, como ficou demonstrado no novo SUV híbrido Zeekr 9X.

Apesar do entusiasmo, a produção em massa deste tipo de bateria ainda enfrenta obstáculos significativos, como os custos elevados, a complexidade dos processos de fabrico e os desafios de durabilidade a longo prazo. Ainda assim, a chegada gradual ao mercado é vista como inevitável, com a Toyota e a Honda a preverem a chegada dos primeiros modelos equipados com baterias de estado sólido entre 2027 e 2028.

400V vs 800V: a importância da arquitetura elétrica

Outro fator decisivo para a redução da ansiedade de autonomia está nas plataformas elétricas que suportam os carregamentos ultrarrápidos. A maioria dos veículos elétricos atuais opera em sistemas de 400V, o que garante uma boa relação entre custo e eficiência, mas limita a velocidade máxima de carregamento, mas nem sempre foi assim.

Longe vão os tempos em que modelos com o Renault Zoe de primeira geração (Q210) com a sua bateria de 22 kWh não suportava carregamento rápido DC, e tivesse como solução de carregamento rápido o carregador opcional de 22 kW AC trifásico. Isto permitia carregar totalmente a bateria em duas horas, ou 7h usando uma tomada de 3,3 kWh.

Atualmente estes valores são impensáveis, e um BYD Dolphin Surf já consegue carregar a sua bateria de 43.2 kWh de forma bastante rápida, demorando somente 30 minutos para carregar dos 10 aos 80% da capacidade total.

Nos modelos mais modernos e mais avançados, são utilizados sistemas de carregamento de 800V, solução essa presente em modelos como o Porsche Taycan, o Hyundai Ioniq 5 e o Kia EV6. Recorrendo a esta solução, tornou-se possível duplicar a eficiência no fluxo de energia, reduzindo significativamente os tempos de carregamento.

Porsche Taycan em carregamento IONITY
Porsche Taycan em carregamento IONITY Porsche Taycan em carregamento IONITY créditos: Ionity_2020

Isto traduz-se em carregamentos de 300 km em cerca de 10 a 15 minutos, um valor que começa a aproximar-se da experiência de abastecimento de um carro a combustão. É certo que existem soluções de carregamento rápido a 400V, como o caso da rede Supercharger da Tesla, que com os modelos V3 conseguem atingir até 250 kW de potência, mas este feito só é possível graças aos inversores utilizados internamente nos veículos Tesla.

Em contrapartida, um posto de carregamento rápido de 800V pode garantir até 350 kW de potência, com a vantagem de recorrer a uma carga de corrente menor, o que por sua vez garante menor aquecimento nos cabos e conectores. Desta forma evita-se o uso de cabos tão espessos e pesados, já que os cabos de carregadores Supercharger V3 da Tesla são refrigerados.

Tabela comparativa de carregamento elétrico
Tabela comparativa de carregamento elétrico Tabela comparativa de carregamento elétrico

A grande limitação, por agora, é o custo acrescido dos sistemas de 800V e a necessidade de instalação de carregadores compatíveis com esta capacidade. Até ao momento a Europa lidera a implementação destes carregadores, sendo já 3% do total de toda a rede europeia compatível com esta tecnologia.

Um futuro sem ansiedade da autonomia?

A ansiedade de autonomia está gradualmente a perder peso à medida que a tecnologia avança. Além da evolução natural das baterias e da eletrónica, surgem ideias mais disruptivas, como estradas capazes de carregar veículos em movimento ou pequenos geradores auxiliares (range extenders) que funcionam como solução de emergência para carregamento da bateria, conforme acontece atualmente com o Mazda MX-30 REV.

Paralelamente, a integração com energias renováveis permite que muitos utilizadores carreguem os seus automóveis em casa a custos muito reduzidos, comparativamente aos custos de carregamento na rede pública.

Num horizonte até 2030, espera-se uma convergência entre diferentes frentes: baterias mais densas e seguras, arquiteturas de alta tensão cada vez mais comuns e redes de carregamento ultrarrápido em expansão. Quando isso acontecer, a "range anxiety" poderá finalmente ser relegada para o mesmo lugar da história onde estão hoje as preocupações dos primeiros condutores de carros a gasolina, uma memória de tempos em que a infraestrutura ainda não tinha acompanhado a inovação.