Há pouco mais de um ano, uma equipa sedeada nos Açores, mais concretamente na Ilha Terceira, e composta por três elementos, subia ao palco para receber o prémio de melhor jogo do ano nos PlayStation Talents. A Redcatpig, até então praticamente desconhecida, já tinha angariado o prémio para o melhor título de competição online, e consumava uma noite de reconhecimento geral de KEO, um jogo de combates com viaturas. Desde então, o estúdio representado por Marco Bettencourt passou a ser presença assídua nos eventos de gaming em Portugal, sobretudo durante o Moche XL Games World, em que dividiu “casa” a meias entre a PlayStation e a Asus, que também está a apoiar o estúdio.
No rescaldo da sua visita a Lisboa, para a quinta edição dos Prémios PlayStation Talents, que deu a vitória a Back Then, Marco Bettencourt aceitou o desafio do SAPO TEK e visitou a redação, de portátil debaixo do braço, para mostrar a mais recente versão de KEO. Enquanto experimentámos este frenético, e visualmente apelativo, jogo de combate, o CEO da Redcatpig foi respondendo às nossas questões.
O mentor do estúdio refere como foi importante tratar a empresa como uma startup e estar presente em outros eventos fora do âmbito dos videojogos, como o Web Summit, que abriu portas a novas oportunidades de investimento. Sendo um jogo multijogador competitivo, a produtora açoriana também já acertou uma parceria com a equipa profissional de eSports OFFSET, para testar novas versões e receber feedback a introduzir em futuras versões.
KEO é um jogo de combate com veículos, num universo de ficção científica, num ambiente pós-apocalítico, e apresenta vários modos clássicos multijogador, entre eles Deathmatch, Dominion e claro, corridas. Mas corridas com carros armados "até aos dentes". Para conhecer melhor KEO e o estúdio português Redcatpig, leia a entrevista a Marco Bettencourt, CEO do estúdio.
SAPO TEK: O que é o KEO?
Marco Bettencourt: O KEO é um jogo com muita ênfase no multijogador online, com veículos de combate em diferentes arenas, cada uma com o seu modo diferente. Queremos atrair tanto jogadores casuais como outros mais competitivos, e por isso temos arenas específicas para cada perfil. Quanto aos modos de jogo vai haver desde o Team Death Match (3x3 e 5x5), assim como uma arena de corrida, mas sempre com ênfase no combate. Queremos apelar não só ao combate, mas também à estratégia, por isso temos em cada veículo o seu perfil, de forma quando tiverem a organizar a equipa, serem designados papéis a cada jogador.
Se um dos elementos quiser explorar na frente pode utilizar um veículo mais rápido, porém menos resistente, mas há outros de defesa, como o The Hox que tem um poder de escudo e de ataque muito forte, mas é muito lento, como se fosse um tanque. Há vários perfis que obrigam os jogadores a organizar a sua equipa em diferentes papéis. O jogo mistura um pouco de Quake com Twisted Metal, com um pouquinho de Command & Conquer no que diz respeito aos perfis das personagens, neste caso os veículos.
Cada veículo, apesar de corresponder a uma classe, são caracterizáveis, com diferentes armas à disposição para escolher. Também são personalizáveis ao nível da cosmética, através de skins e outras coisas que vão ser anunciadas e surgir no jogo depois. O objetivo é cada jogador criar o seu veículo bem diferente de todos os outros.
O jogo terá um foco multijogador online, mas também split-screen (ecrã dividido), para jogadores casuais jogarem com amigos na sala.
SAPO TEK: O estúdio tem planos para colocar o jogo ao nível dos eSports. A parceria recente com a equipa OFFSET espelha isso? Quais são os objetivos?
Marco Bettencourt: Desde início que acredito que num projeto, embora o dinheiro seja importante, as sinergias conseguem ser feitas de várias formas sem ser através de capital. E existe know how de diferentes players que nos fazem falta. Como o nosso interesse é ir para os eSports, essa conversa surgiu durante o Moche XL Games World, já que o KEO estava disponível em duas estações da Asus ROG. Quando dei conta estavam os jogadores da OFFSET no stand da marca e percebi que já existia uma ligação entre ambas e por isso fiz 1+1=2: como já tínhamos uma ligação com a Asus e como damos valor ao feedback que uma equipa profissional possa dar no jogo, para mim foi uma conta muito fácil.
Abordei-os para experimentarem o jogo, eles gostaram do KEO e em cinco minutos já nos deram dois ou três dicas de feedback que foram muito úteis. Dei depois seguimento às conversas e falei com o CEO da equipa, o Luís, e o interesse deles foi imediato, ao de se associarem a um videojogo nacional com vertente competitiva. Os devs não sabem tudo, por isso, no que toca a competitividade, o mundo dos eSports é muito grande, e por isso temos de nos juntar aos melhores para sermos os melhores, e a OFFSET tem feito coisas brutais nos últimos tempos, pelo que tenho acompanhado.
Em termos práticos, a equipa tem acesso em primeira-mão às novas builds focadas no multiplayer online, ou seja, os novos assets, novos features dessa versão, eles terão acesso primeiro, mesmo antes de levarmos aos eventos, para que os seus atletas possam, nas horas livres, testar o KEO sempre que possível, sem interferir nos seus treinos. Há ainda uma relação direta nas redes sociais, mas também as mecânicas do jogo, desde a simples interface, ao esquema de rankings ou mesmo a jogabilidade de 3x3 ou 5x5.
SAPO TEK: Como surgiu a Redcatpig? Quem são vocês?
Marco Bettencourt: Em finais de 2016, os meus dois colegas, o Brian e o João, sempre tiveram vontade de avançar para a produção de videojogos. Mas é uma indústria dificílima, e pensaram (tal como eu) que trabalhar em part time é muito inglório e complicado. Para trabalhar a full time é necessário pagar contas e colocar comida na mesa. Em conversa com eles assumi esse desafio, de arranjar investimento para este projeto, e outros projetos que irão surgir. E tudo correu bem, tivemos um investimento do Business Angel, depois outros vieram para bordo graças ao Web Summit e o seu mundo de empreendedorismo. Sempre quis assumir que, antes da Redcatpig ser um estúdio de videojogos, é uma startup que precisa de investimento, parceiros e sócios. E talvez tenha sido esse perfil que assumimos que fez com que tivéssemos algum sucesso nesse mundo.
Em 2018 fomos considerados uma das 50 startups mais mediáticas de Portugal, ficámos em 47º. Em 2019 subimos esse ranking para 22, segundo a Cision. Imaginar que uma startup de três pessoas, agora de quatro, nos Açores, e a fazer videojogos estivesse num ranking onde se encontra a Unbabel e a Farfetch, que são startups que mexem com milhões e milhões de euros, é algo surreal e prova que é possível, e com um budget quase zero para marketing. Eu penso que isso se deve à nossa postura de que, sim, os jogos são fixes, andamos aqui a brincar, mas a imagem tem de ser séria, e no fim do dia somos uma startup, antes de sermos um estúdio de videojogos. E essa postura tem sido favorável.
Relativamente ao nome, sim é estranho, mas tem-se tornado um grande “quebrar de gelo”, pois todas as pessoas ficam curiosas com o Redcatpig. Ando na rua com um casaco, com o nome do estúdio, e as pessoas procuram no Google o significado e acabam por me dar os parabéns pelo website, ou que o nome é estranho mas fixe. Eu fui resistente, o nome foi dos outros elementos do estúdio, porque venho do marketing digital, e o nome não me fazia qualquer sentido, mas funcionou.
Para o nosso primeiro projeto, o KEO, fizemos uma primeira ronda de investimento que correu bem, levantamos o dinheiro necessário para aquela altura e avançámos a 200 à hora no projeto, e já estamos a preparar uma segunda ronda, já com interesse de investidores e com contactos que temos mantido desde o Web Summit de 2019, a nossa segunda participação.
SAPO TEK: E qual foi a importância do Web Summit para o estúdio?
Marco Bettencourt: Quando disse a algumas pessoas que íamos ao nosso primeiro Web Summit, em 2018, o feedback imediato foi chamarem-nos malucos, e o que íamos lá fazer, porque ninguém ia jogar o nosso jogo, já que não havia gamers a ir ao evento. Mas a minha estratégia sempre foi clara, e não era ir conhecer gamers, pois para isso existem os eventos dedicados. Eu fui lá para conhecer possíveis parceiros, B2B, ou simples investidores.
A nossa visita em 2019 foi consolidar o produto e mostrar as diferenças do ano passado. E o engraçado é que fomos com os investidores que tínhamos angariado anteriormente, eles quiseram vestir a camisola. E tivemos uma agradável surpresa, porque começámos a ser contactados, através da aplicação do Web Summit, por investidores que queriam marcar reuniões connosco, pois queriam saber mais sobre o projeto. Durante os três dias do evento, tivemos 12 reuniões, a maioria possíveis investidores. E passado este tempo, estamos ainda em conversações com pelo menos cinco.
Mas o que me deixa triste, é que em várias dessas reuniões, esses potenciais investidores me perguntavam onde estavam outras startups de gaming. E não havia, tirando soluções de AR/VR, não havia ninguém, éramos os únicos, e não sabia responder. Apesar de pensar que se houvesse mais estúdios nacionais a apostar no evento a indústria ia para a frente, por outro lado capitalizo o potencial de investimento.
SAPO TEK: Existe algum sentimento na comunidade de estúdios nacionais pela falta de investimento das empresas. Sente isso?
Marco Bettencourt: Eu oiço um pouco desse diálogo de alguns produtores, que não há dinheiro, não há isto ou aquilo, procuram alguns financiamentos europeus, mas estes não são fáceis de angariar. Existe muito a mentalidade de que se não for um publisher não há dinheiro. Eu discordo dessa mentalidade. Sim, um publisher pode vir a dar dinheiro, e quanto mais melhor, dependendo das condições, claro. Mas pela minha experiência, os investidores, muitos deles internacionais, estão a olhar com bons olhos a mão-de-obra e talento que temos cá dentro. Porque já temos a fama de fazer muito, com pouco, e não há nada melhor para os investidores. E notei isso nas reuniões que tive durante a Web Summit. Há empresas de Israel que querem investir no gaming das consolas e do PC.
SAPO TEK: Tem mantido uma preocupação em puxar pela indústria e de servir como exemplo e inspiração para outros estúdios. Será que para o ano vamos ver mais produtoras no Web Summit?
Marco Bettencourt: Por vezes fico com a impressão de que pensam que tenho comissão na Web Summit, porque estou sempre a falar nela, ou mesmo do Governo Regional dos Açores, porque estou sempre a falar dos Açores. Mas não é verdade, eu quero que a malta evolua, que arranje as melhores condições possíveis. Estamos nos Açores, longe sim, mas fazemos parte de um ecossistema brutal, extremamente favorável, para que as startups se mexam. Isso aliado à nossa tentativa de rentabilizar ao máximo as nossas vindas ao continente, funciona muito bem. Temos um parque tecnológico muito bom, a nossa casa está arrumada. Por vezes o aconselhamento e mentoria, redes sociais, condições de trabalho valem mais que um cheque. E nós temos tudo isso. Mas apenas estamos a dar os primeiros passos, que felizmente parecem ser os corretos. Mas Portugal precisa de uma indústria e não vamos ser nós, ou o KEO que vai fazer isso. Longe disso. É preciso a malta toda.
SAPO TEK: E que expectativas prevê para o KEO, em termos de projeção?
Fazer o business plan do KEO foi a coisa mais difícil em que estive envolvido nos últimos anos, e tive a ajuda de uma amiga que tem muito conhecimento nessa área. E isso obriga a projeções, de quando vai vender em 2020 ou 2021, e no gaming isso é muito difícil, porque podes ter um Fortnite que de um dia para o outro explode, como pode haver um flop qualquer, que tudo indicava que ia vender bem. Há pessoas que gostam de avaliar as red flags, eu gosto de avaliar as green flags, e temos vários indicadores positivos em relação ao nosso produto, de pessoas da indústria que têm um know how de mais de 10 anos. Existem mesmo números que já foram calculados por publishers que têm interesse em trabalhar connosco, e com base na sua experiência e pelo que viram no KEO, já os projetaram, claro.
SAPO TEK: Quer dizer que já existem publishers internacionais com propostas na mesa?
Marco Bettencourt: Felizmente sim. Estamos no compasso para finalizar algumas negociações que também estão em cima da mesa, para tentar alcançar o melhor cenário possível para o KEO. Claro que alguns desses publishers não têm o perfil mais adequado para lançar o jogo, outros têm, uns querem investir mais, outros menos, por isso queremos analisar bem as melhores propostas. Para já não quero adiantar nomes.
SAPO TEK: E qual foi a importância dos prémios PlayStation, agora que acabou de passar o testemunho para o novo estúdio que venceu a edição deste ano?
Marco Bettencourt: Nunca imaginei que o estúdio pudesse ganhar esse prémio, e que passado um ano estaria ali para entregar ao novo vencedor. Tudo parece um sonho. Por vezes mais importante que os investidores e a PlayStation, os publishers e ecossistema em que estamos inseridos, é o apoio que temos em casa. Subir ao palco para receber o prémio foi a validação do esforço, não só como estúdio, mas pelo esforço das nossas famílias que também investem, não com um cheque, mas em nós e por acreditarem em nós.
Em relação ao prémio PlayStation em si, é muito válido, sobretudo para quem não está na indústria gaming, ver um selo dos Talents. Falei com alguns investidores internacionais, e claro, usamos os prémios e as nomeações para destacar o jogo. E os investidores sentem mais confiança no projeto, porque a PlayStation já validou, e ficam mais confiantes. Em termo de mentoria, a PlayStation faz um grande apoio nos eventos, as portas que nos abrem para os eventos é excelente, sobretudo para nós que estamos aqui nos Açores. Graças a essa ajuda, já registamos cerca de 1.200 pessoas que já jogaram o jogo nos eventos.
Se bem que o trabalho principal da PlayStation ainda não começou. Esse trabalho inicia-se quando começarmos a fazer a adaptação à PS4 e a meter na rua a campanha de lançamento. Estamos a fazer esforços para lançar o jogo no final do ano, ou pelo menos para o finalizar, o lançamento vai ser discutido depois.
SAPO TEK: E com essa previsão, não tem receio de KEO ser ofuscado pelo lançamento da PlayStation 5? Considerando que não haja já planos para lançar o jogo na nova consola
Marco Bettencourt: Já falámos sobre isso, mesmo com a PlayStation, e precisamos olhar para os números. A PS4 vendeu cerca de 110 milhões de unidades e essas consolas não vão ser deitadas no lixo depois do lançamento da PS5, de um dia para o outro, por isso há todo esse potencial de venda. Além disso, a PS5 será retrocompatível com os jogos da PS4 é um fator interessante. Claro que a nova consola é sedutora, tem várias melhorias, mas sobre um lançamento exclusivo para a PS5 é um “nim”, mas garantido está o lançamento simultâneo de PC e PS4 no mesmo dia.
SAPO TEK: E vai haver cross-play entre PC e PS4?
Marco Bettencourt: Ainda não consigo garantir se o jogo será compatível em cross-play entre as duas plataformas. Na verdade, o jogo precisa de comunidade, e esse foi um dos fatores que permitiu a PlayStation deixar-nos lançar o jogo no PC e PS4 no mesmo dia. E nada melhor que o PC para puxar pela comunidade. Há uma sinergia, pois são as duas maiores plataformas. Há muito feedback dos jogadores que analisamos e inserimos no jogo, e já estão disponíveis em versões atuais.
SAPO TEK: E micro-transações?
Marco Bettencourt: As micro-transações são uma certeza, mas tudo cosmético, nada de itens pay to win. Queremos criar oportunidades de cruzamento de branding, com os influenciadores, tais como DJs, assim como o Fortnite que lançou singles do Marshmallow. Não queremos inventar a pólvora, mas queremos fazer um fogo de artifício um pouco diferente, porque já há muita coisa bem feita, e queremos aprender.
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