Depois de quase dois anos de pandemia, muitas restrições à circulação e um novo entendimento - quase forçado - sobre o potencial do trabalho remoto, o mundo passou a olhar de outra forma para este conceito. As empresas repensam estratégias para fazer dos antigos escritórios espaços mais de partilha do que de trabalho “puro e duro”, enquanto milhões de empregados em todo o mundo perceberam que não querem perder a qualidade de vida, que modelos de trabalho mais flexíveis têm para oferecer.
Há previsões que indicam que em 2030 cerca de 30% de todos os espaços de escritório a nível global vão ser usados de forma flexível (JLL). Ou que depois da pandemia 48% dos trabalhadores a nível mundial vão passar a trabalhar remotamente, total ou parcialmente, em comparação com os 30% que já o faziam antes da pandemia (Deloitte). Mas até lá há um longo caminho a percorrer.
“As organizações já compreenderam que, para terem uma proposta de valor competitiva junto do mercado de talento, têm de encarar de forma séria o trabalho híbrido”, sublinha Tânia Ribeiro, senior manager da EY em Portugal. “É um contexto de trabalho novo, ainda muito pouco testado no mundo, pelo que as empresas estão agora a começar a ensaiar modelos, a perceber o que poderá servir ou não, à luz da sua realidade”.
Nalguns casos, a opção full remote - 100% remoto - também se discute. Noutros já foi adotada, como fez a Liberty Seguros em Portugal. A grande maioria das empresas em Portugal, no entanto, aponta para um modelo híbrido apenas parcialmente remoto, onde cabem diferentes abordagens, com diferentes modelos de rotação de pessoas, diferentes percentagens de presença on-site, entre outras variáveis, reconhece a Deloitte, que ainda identifica muitas mudanças por fazer.
“As organizações já compreenderam que, para terem uma proposta de valor competitiva junto do mercado de talento, têm de encarar de forma séria o trabalho híbrido”, Tânia Ribeiro, senior manager da EY
“As metodologias de trabalho, apesar de terem vindo a ser adaptadas no último ano e meio para fazer face aos confinamentos com o mínimo de disrupção, ainda têm um potencial grande de evolução, já que o que se verificou foram adaptações e não tanto alterações estruturais”, sublinha Diogo Santos, partner da consultora.
As áreas onde continua a existir uma necessidade de maior transformação, aponta, são ao nível das lideranças, da gestão e acompanhamento das equipas (incluindo formação) e na vertente de monitorização e acompanhamento de resultados.
Modelos híbridos têm desafios para resolver nos próximos anos
Por resolver nos próximos anos estão também mais alguns desafios importantes associados ao modelo híbrido, por exemplo, no que se refere à identidade e cultura das organizações. “Com as equipas dispersas, é fácil o vínculo emocional começar a ficar mais diluído, e sem este forte comprometimento, o turnover começa a aumentar (o que já está a acontecer em sectores mais competitivos), desestabilizando a performance das equipas”, admite Tânia Ribeiro.
A EY antecipa que o escritório, enquanto espaço físico, terá de ser equacionado para promover a colaboração, ideação e reforçar o sentimento de pertença, a par e passo de uma comunicação interna bem estruturada e de líderes que estejam aptos a gerir equipas mistas (dispersas), focados no binómio empatia - resultados.
Este é aliás um caminho que muitas empresas já estão a fazer, como a PHC, que voltou ao escritório apenas dois dias por semana no início de setembro, ou a OutSystems, que ultima um modelo onde o trabalho remoto será a regra, sem dispensar que cada equipa defina momentos de partilha e colaboração no escritório. Num e noutro caso, as instalações da empresa vão funcionar como espaços não só de trabalho, mas para promover o espírito de equipa e a partilha de experiências, como aliás já acontecia antes da pandemia porque ambas já valorizavam esse aspeto.
Outro ponto que a EY destaca como essencial na adoção destes novos modelos híbridos é a forma como o trabalho é desenhado, as políticas e regras associadas e a capacidade de promover equilíbrio entre vida pessoal e profissional, para não conduzir à exaustão emocional de estar “sempre ligado”, pisando a fronteira casa/trabalho.
“Os modelos de trabalho mais abertos e flexíveis deixaram de ser considerados como um benefício, para serem assumidos pelo candidato como um dado adquirido - sobretudo em funções mais técnicas”, Vasco Teixeira, senior manager da Michael Page
Alexandra Líbano Monteiro, Vice President of People da OutSystems, admite que a importância deste cuidado foi uma das aprendizagens da empresa no momento mais crítico da pandemia. Nessa altura a OutSystems optou por passar a dar flexibilidade total aos colaboradores para gerirem tempo pessoal e profissional, criando até a máxima “What works for you works for OutSystems e “o que sentimos foi que a mensagem de conforto fez com que as pessoas devolvessem em entrega”.
No entanto, a mesma responsável admite que em alguns aspetos a falta de momentos cara a cara foi prejudicial e reconhece que o trabalho solitário aumenta a probabilidade de tomar más decisões, conclusões que estão a influenciar o desenho do novo modelo.
Escassez de talento vai “empurrar” empresas para modelos de trabalho mais atrativos
Outro aspecto relevante na migração das empresas para novos modelos de trabalho é a necessidade crescente de reter e captar talento, sobretudo em áreas onde a escassez começa a ser um problema. Flexibilizar ou não modelos de trabalho, nestes casos, pode já não ser apenas uma decisão das empresas, mas uma condição para poder continuar a disputar os melhores profissionais.
Gonçalo Hall, consultor e co-fundador da comunidade Remote Portugal, acredita que “todas as empresas que não forem para modelos remotos vão perder a maior parte do seu talento”, porque muitas outras irão, ganhando uma vantagem competitiva na disputa pelos melhores recursos, estejam eles onde estiverem.
Vasco Teixeira, senior manager da Michael Page, já identifica esta tendência nas preferências dos candidatos a emprego em áreas mais competitivas. “Os modelos de trabalho mais abertos e flexíveis deixaram de ser considerados como um benefício, para serem assumidos pelo candidato como um dado adquirido - sobretudo em funções mais técnicas”.
Num futuro não muito longínquo a EY acredita por isso que equipas globais - com talento geograficamente disperso, outsourcing, freelancers e concorrentes-parceiros são modelos que vão ganhar cada vez mais aderência e que podem abrir portas a novas formas de colaboração e inovação.
Explorar estes novos caminhos vai influenciar o trabalho nos próximos anos e o mesmo impacto terá a crescente digitalização de processos nos mais diversos sectores, ao levarem para dentro das empresas funções completamente novas.
“Tendo Portugal recursos humanos com um value for money muito interessante, esta evolução para uma maior preponderância de trabalho remoto irá permitir-nos posicionar os nossos serviços e recursos à escala global", Diogo Santos, manager Deloitte
Isso vê-se na indústria, como acontece na quase centenária Riopele que já integra data scientists, como conta Cláudia Queirós. Na banca, com a “redução de agências de atendimento ao público e aposta cada vez maior em canais digitais”, ou no retalho onde as “direções de Digital Sales e logística ganharam importância estratégica”, como exemplifica Tânia Ribeiro.
À boleia da transformação para o digital, a Michael Page identifica já uma procura crescente de talento na gestão de informação/dados (Big Data), Machine Learning, Inteligência Artificial, Segurança da Informação (Cybersecurity), Cloud Computing e Engenharia de Software (Backend e frontend).
As empresas procuram respostas no mercado, mas também se reinventam para conseguirem responder internamente às novas necessidades. “Há algumas iniciativas em curso de reconversão, sobretudo em empresas de consultoria e em algumas tecnológicas”, nota Vasco Teixeira, que aponta o exemplo das academias que “convertem” centenas de candidatos todos os anos, com ações de atração de talento junto das Universidades, uma tendência que tende a crescer.
Oportunidades e desafios para Portugal
Se empresas e academia conseguirem encontrar boas respostas para as necessidades de talento, para as empresas portuguesas a afirmação do trabalho remoto pode significar uma nova oportunidade para vencer a periferia geográfica do país e fazer chegar os seus serviços a novos mercados, defende a Deloitte. “Tendo Portugal recursos humanos com um value for money muito interessante, esta evolução para uma maior preponderância de trabalho remoto irá permitir-nos posicionar os nossos serviços e recursos à escala global, transformando o conceito de emigração / êxodo de quadros a que se assistiu no passado para uma lógica de exportação de serviços”, defende Diogo Santos. O reverso da moeda é que as empresas noutros países também terão cada vez mais condições para atrair talento português, que não precisará de sair do país para responder a uma oferta de emprego no outro lado do mundo.
A gestão destes fluxos de talento também passa pela capacidade de cada país para atrair e dinamizar ecossistemas de startups, nómadas digitais e hubs de inovação. Ou pela atratividade das leis fiscais e do trabalho, temas que vários países europeus refletem nos seus planos de recuperação económica pós-covid. Portugal não é exceção mas o ritmo da mudança tem merecido algumas críticas, sobretudo depois da vizinha Espanha ter aprovado uma redução de impostos de 15% para as startups e a criação de um visto para nómadas digitais.
“O programa [e-Residency] será lançado até ao final da legislatura, sem prejuízo de algumas funcionalidades poderem ser disponibilizadas progressivamente”, André Aragão de Azevedo, secretário de Estado para a transição digital
André Aragão de Azevedo, secretário de Estado para a transição digital, sublinha sobre este tema que o Plano de Recuperação e Resiliência Português reserva 125 milhões de euros para três grandes medidas que pretendem reforçar o ecossistema de empreendedorismo, através do reforço da estrutura e competências da Startup Portugal (25 milhões de euros), um programa de vouchers para incubadoras e aceleradoras (20 milhões de euros) e apoio direto a startups verdes e digitais (90 milhões de euros).
Neste âmbito, o objetivo do Governo passa por reforçar os meios humanos e financeiros da Startup Portugal, enquanto entidade com poderes para implementar políticas públicas na economia e transição digital. No apoio às startups, a prioridade será “ajudar a desenvolver modelos de negócio digitais e com forte componente verde, nomeadamente através de produtos e serviços digitais de elevada eficiência na utilização de recursos” que fomentem a economia circular, acrescenta o governante.
e-Residency, nómadas digitais e startups
Na calha está também o lançamento do programa e-Residency (identidade digital), mas o Governo continua a não se comprometer com uma data para o lançamento da iniciativa. Remete para o que está previsto no Plano de Ação para a Transição Digital, com uma nuance: “o programa será lançado até ao final da legislatura, sem prejuízo de algumas funcionalidades poderem ser disponibilizadas progressivamente”. As primeiras novidades devem surgir já na Web Summit, segundo informação partilhada pelo secretário de Estado na VivaTech em Paris, citada pela Lusa.
Este tipo de programa, que permite por exemplo a um empreendedor criar uma empresa em Portugal, ou abrir uma conta bancária, sem vir ao país, já existe em geografias como a Estónia, que foi pioneira, mas o Governo garante que a iniciativa portuguesa terá características diferenciadoras.
“A nossa pretensão é que este processo seja 100% digital, é para isso que estamos a trabalhar, uma vez que acreditamos que é um tema essencial para o target desta medida e uma diferenciação importante, ainda não alcançada pelos restantes países da União Europeia”. Entretanto, há pouco mais de um mês foi aprovado o diploma que permite o reconhecimento de atos autênticos à distância, um passo fundamental para o e-Residency.
Portugal quer também fazer a diferença com a inclusão complementar de serviços do sector privado no programa, “criando uma experiência all in one place que será uma mais valia para utilizador”. “Este programa será a primeira impressão para os digital nomads com as entidades portuguesas, pelo que pretendemos que a experiência seja o mais inovadora e fluida possível”, continua o secretário de Estado.
Há pouco mais de um mês foi aprovado o diploma que permite o reconhecimento de atos autênticos à distância, um passo fundamental para o e-Residency
Atrair comunidades de nómadas digitais é uma meta que vários países contemplam nos seus programas de recuperação. Gonçalo Hall, que liderou o lançamento da Digital Nomads Madeira e está agora a trabalhar com o Governo Regional dos Açores calcula que apenas 5% do trabalho remoto atual seja assegurado por nómadas digitais, que ainda assim procuram cada vez mais ter um impacto relevante nas comunidades que integram.
A nível global, calcula-se (num estudo do site Brother Abroad) que existem em todo o mundo 35 milhões de nómadas digitais, uma comunidade feita de gente de muitas nacionalidades que se fosse um país seria o 41º mais populoso do mundo e o 38º mais próspero. Por ano, segundo estes dados, estas comunidades geram um valor na ordem dos 787 mil milhões de dólares.
A Madeira para já é caso único em Portugal no desenho de uma estratégia integrada para o desenvolvimento e promoção de comunidades de nómadas digitais. Um projeto que foi “embalado” pelo Governo Regional, mas que integra já vários parceiros privados.
Este artigo integra o Especial O futuro do trabalho já chegou e tem várias formas.
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