Em 2019 o debate sobre a mudança da legislação que protege os direitos de autor mobilizou de forma inédita as organizações, empresas e a sociedade civil, com os alertas a chegarem aos utilizadores, nem sempre da forma mais clara e correcta. Uma campanha sem precedentes que tentava influenciar as negociações que se arrastavam desde 2016, e que envolveu youtubers, fez com que muitos jovens ficassem em pânico com a ideia de que a internet ia acabar.

Em Portugal foi o Wuant que esteve no centro das mensagens contra o Artigo 13 da Diretiva (agora artigo 17), embora não fosse o único a quem o YouTube pediu que utilizasse a sua influência.

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Campanhas de emails, telefonemas e pressões sobre os deputados do Parlamento Europeu, cartas e abaixo assinados, muitos artigos de opinião e manifestações, deram eco à discordância dos que consideravam que as mudanças limitavam a liberdade de expressão, punham em causa a criação de memes e iniciativas como a Wikipédia. E apesar de tudo e de todos, embora com alterações várias pelo meio, a Diretiva dos Direitos de Autor foi aprovada.

Os Estados membros da UE  tinham dois anos para fazer a transposição e durante este tempo tudo esteve mais ou menos tranquilo. Hoje, 7 de junho, acaba o prazo e é certo que Portugal não vai cumprir a data, até porque ainda não há uma proposta em cima da mesa.

Em resposta ao SAPO TEK o Ministério da Cultura adianta que “neste momento, está em fase final a redação um documento de transposição, a que se seguirá a abertura de um processo de consulta pública”. A mesma fonte explica que “apesar da grande complexidade deste processo, Portugal está a acompanhar todos os Estados-membros no que respeita à transposição da diretiva, estando a desenvolver um trabalho conjunto e coordenado no espaço europeu, acolhendo as linhas orientadoras da Comissão Europeia, entre as quais as referentes ao artigo 17º (ainda não divulgadas pela CE)”.

Na verdade essas mesmas guidelines foram divulgadas ainda no dia 4 de junho, um documento que pretende garantir uma aplicação coerente dos Estados membros em relação a alguns pontos da diretiva.

“Todos os Estados-membros têm uma margem reduzida relativamente às grandes questões que a diretiva compreende. Sendo este um processo conjunto, ao nível da EU, exige uma visão de equilíbrio face aos interesses em causa e que têm de ser observados", justifica ainda fonte oficial do Ministério da Cultura

"Ou seja, os Estados-membros têm, naturalmente, de estar alinhados e concertados relativamente às orientações da Comissão Europeia para a transposição da diretiva”, defende a mesma fonte

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Embora ainda não exista uma proposta de texto para a transposição em Portugal, o ministério já fez circular há alguns meses um questionário entre algumas entidades que abordava pontos a sondar na consulta pública.

Questionado pelo SAPO TEK sobre a abertura para diálogo em relação ao texto da diretiva, o ministério da Cultura afirma que “o Governo tem mantido contactos com todas as entidades que representam titulares de direitos e com as plataformas que manifestaram a intenção de participarem neste processo”, reforçando que “estivemos sempre disponíveis para receber todos os contributos, situação que manteremos, obviamente, após a abertura da consulta pública da diretiva”.

A Associação D3 foi uma das entidades que respondeu ao questionário e adiantou ao SAPO TEK que “continuamos à espera quer da consulta pública, quer da proposta de transposição”. A associação de defesa dos direitos digitais foi desde o início uma das mais ativas contra a diretiva e mantém online um histórico das suas posições e publicações. Ainda em 2017 assinou uma carta aberta contra a monitorização e filtros de upload que se antecipava nas propostas discutidas na Europa. Entretanto admite que “a versão final da diretiva é naturalmente diferente da dessa altura, mas o cerne das questões não mudou”.

Atrasos esperados mas necessidade de transposição urgente

O atraso na transposição das diretivas não é uma situação nova e Portugal não é o único país que está em situação de incumprimento a partir de hoje. O tema interessa, e muito, a todo o sector criativo e há várias vozes a pedir rapidez na transposição da lei, e até a sugerir textos alternativos.

Mesmo assim, Miguel Carretas, diretor geral da Audiogest, admite que prefere esperar do que ter uma má lei. “Se perguntar se prefiro depressa ou bem, prefiro bem”, afirmou em entrevista ao SAPO TEK. O responsável pela associação de gestão e distribuição de direitos de música sublinha porém que a situação é urgente.

“Temos pressa e urgência [...] Disto depende o nosso futuro, é preciso terminar com a permanente inversão de valor entre os artistas e plataformas”, afirma Miguel Carretas

O diretor geral da Audiogest garante que não é só a possibilidade de cobrar, mas todo o modelo de negócio que afeta o futuro da indústria da música. “As plataformas que se assumem como distribuição, como o Spotify ou o Youtube music, estão no mercado a concorrer e de facto não estão sujeitas às mesmas regras […] é importante corrigir isto rapidamente”, defende

A GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas) decidiu mesmo avançar com uma proposta de transposição do texto da diretiva, procurando assegurar que “seja garantido aos artistas o pagamento pela utilização das suas obras nas grandes plataformas como o Youtube, o Facebook, a Spotify, a Google ou a iTunes”.

“O mais importante na transposição da Diretiva MUD para Portugal é acabar com a situação atual, na qual as grandes plataformas e as grandes produtoras e editoras pactuaram um modelo em que ganham milhões de euros com a disponibilização, o “streaming” ou o“download” de música, cinema, teatro, dança, séries, etc., sem intervenção expressa  da esmagadora maioria dos intérpretes e executantes portugueses”, afirma Pedro Wallenstein, presidente da GDA

Um comunicado enviado à imprensa em abril deste ano sublinhava que “estas plataformas, juntamente com produtoras e editoras fonográficas, se apropriam de cerca de 93% das receitas geradas. Em cada 10€ pagos pelo utilizador das obras artísticas no mercado digital, apenas 0,70 cêntimos chegam, em média, aos autores e artistas que as criam, interpretam e executam”.

Os números são contestados por Miguel Carretas, que diz que a GDA “está a colocar no mesmo bolo os produtores e as plataformas, que não estão na mesma situação” e afirma que “esta narrativa não tem adesão à realidade”. Do lado da Audiogest está a ser feito um levantamento de dados nacionais sobre os royalties pagos aos autores pelos produtores, sublinhando que estes têm também investimentos a suportar na divulgação da música. “Pensamos ter esses números muito em breve”, afirmou.

Preocupações com a possibilidade de ter uma “lei boa”

Desde que a diretiva foi aprovada na Europa, ainda em 2019, que surgiram preocupações sobre a forma como seria transposta para o direito nacional, até pela flexibilidade que existe, ao contrário do que aconteceria com um regulamento. Mesmo com a ideia de um mercado único digital, diferentes países têm optado por abordagens diferenciadas.

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“A base de partida está longe de ser ideal, mas existe uma boa margem de manobra, até porque perante a falta de entendimento, a Europa deixou as questões realmente difíceis para os Estados-membros resolverem”, lembra a D3, que espera que Portugal não se limite a “seguir os ditames da indústria”. E isso pode levar o tema ao Tribunal de Justiça da UE.

“As posições do Estado português neste tema em geral têm seguido os ditames da indústria, sem consideração por quaisquer outros interesses em jogo, nomeadamente questões de interesse público relacionadas com liberdade de expressão online”, refere a D3

Para a associação, “continuar com essa postura inflexível irá inevitavelmente levar a prejuízos no que respeita a direitos fundamentais exercidos na Internet, como acontece na questão da solução a adoptar em relação ao artigo 17 (ex-13), que eventualmente terá de ser resolvida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia”.

Miguel Carretas tem uma visão diferente, e defende que apesar da margem de flexibilidade existente a transposição nunca deve ser usada num sentido que venha a por em causa a diretiva, evitando “inovações que não sejam pensadas á escala europeia” e que podem ser no mínimo contraproducentes ou ineficazes. “As plataformas podem optar por desligar a ficha, e simplesmente não prestar serviço em Portugal”, explica.

As preocupações da Audiogest centram-se especialmente no quadro do Artigo 17. “Queremos que [a transposição] não acabe por criar um complexo enredo em torno dos mecanismos de responsabilização das plataformas, que possa por em causa o principal objetivo de responsabilização”, defende, afirmando que tem de ficar claro que as plataformas não são neutras, praticam um ato de disponibilização de conteúdos, e por isso devem ser responsabilizadas. “E isso deve ser levado ao limite”, justifica.

Em entrevista ao SAPO TEK, Miguel Carretas defende ainda que é importante que o legislador nacional “não se deixe a enredar por soluções que se vêm a revelar depois impossíveis”, nomeadamente nos mecanismos de reapreciação do bloqueio ao uso dos conteúdos.

“Temos de ser coerentes, quando defendemos que tudo tem de ser transposto, é tudo”, afirma, lembrando que “a diretiva já foi resultado de um consenso que demorou muito tempo a negociar”.

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