A inteligência artificial continua a ser um tópico corrente na indústria tecnológica, uma corrida das principais empresas da atualidade. Para onde caminha esta tecnologia na área industrial e as suas implicações são temas abordados no relatório Tech Trends 2030 da Siemens. Apesar da IA generativa ser algo recente, pelo menos no que diz respeito à utilização pessoal, esta tecnologia tem vindo a oferecer grande valor à indústria nas últimas décadas, segundo o relatório.

Inovações em áreas como machine learning e redes neurais são exemplos que permitem aceder a soluções como manutenção de prevenção ou design generativo. O que a IA generativa permite é abrir novas oportunidades, que além do entusiasmo generalizado, consegue criar real valor à indústria.

A propósito do relatório, o TEK entrevistou Hélio Jesus, responsável por Tecnologia e Inovação na Siemens Portugal, que destaca que o tema da IA não é um tema novo para a empresa. Esta investe há mais de 30 anos na tecnologia, detendo mais de 3.000 patentes relacionadas, por exemplo, com redes neurais, machine learning e IA generativa.

Está localizada em Portugal uma equipa pertencente ao departamento central de investigação e desenvolvimento da Siemens, a Foundational Technologies, que produz projetos na área da IA que já trabalhava no tema na década de 1970, muito antes de muitos dos atuais players da área terem sido fundados”.

A IA é considerada uma tecnologia-chave para a Siemens e utilizada por toda a empresa, de forma interna e externa. “A nossa principal aposta é a inteligência artificial industrial, ou seja, aquela que é aplicada aos setores que formam a espinha dorsal das nossas economias, como as infraestruturas, mobilidade, saúde ou indústria”. A empresa diz ter acesso a uma “imensidão de dados valiosos, algo que não acontece em muitas organizações”, que diz englobar mais d duas dúzias de indústrias com as quais trabalha.

Soluções para tornar os edifícios mais inteligentes e sustentáveis, aumentar a confiabilidade e a frequência dos sistemas de transporte e acelerar a transição energética, são algumas das áreas onde a Siemens atua. Além de outras soluções que ajudam os clientes a enfrentar desafios como a produtividade e a falta de mão-de-obra qualificada, usando sistemas de automatização de tarefas, “para as quais antes eram necessárias competências altamente especializadas”.

LLMs são intermédios entre APIs nas aplicações industriais

Segundo Hélio Jesus, a IA generativa tem o potencial para transformar a indústria e amplificar a colaboração entre o Homem e as máquinas. Mas para a Siemens, é “essencial que essa tecnologia compreenda a linguagem e os contextos próprios da engenharia em toda a sua cadeia de valor e a realidade de cada sector”. Nesse contexto, a empresa tem desenvolvido modelos fundacionais industriais (Industrial Fundational Models), que sejam capazes de interpretar não apenas texto e imagens, mas também modelos 2D e 3D, desenhos técnicos e outras estruturas específicas da indústria.

Para a Siemens é essencial que essa tecnologia compreenda a linguagem e os contextos próprios da engenharia em toda a sua cadeia de valor e a realidade de cada sector

Para isso, é preciso haver o pré-treinamento de modelos com dados específicos de cada vertical industrial, para a criação de soluções de IA industrial “com uma compreensão de contexto onde são considerados princípios físicos e químicos que regem os fenómenos característicos de cada sector”. Refere ainda que os LLMs estão a introduzir uma nova forma de integração de sistemas ao atuarem como tradutores inteligentes entre diversos protocolos de comunicação e interação interoperacional, entre diferentes protocolos e aplicações, eliminando barreiras técnicas.

Na prática, os sistemas interpretam instruções em língua natural e convertem em API, um conjunto de regras que permite que diferentes sistemas e softwares comuniquem entre si de forma padronizada. Pode ainda identificar automaticamente esses pontos de ligação de certos sistemas e adaptar-se ao contexto de cada operação, como a deteção de erros e validação de dados. Isto permite abrir caminho para comunicações industriais mais eficientes, adaptáveis e seguras, explica Hélio Jesus.

A Siemens usa os seus dados que tem acesso para trabalhar em sistemas que revolucionam a forma como as empresas desenham, desenvolvem, modelam, produzem e operam ao longo de toda a cadeia de valor. Além de aumentar a produtividade, promover a inovação e crescimento das mesmas.

O lema da empresa é o trabalho em ecossistema, através de parcerias com organizações de diferentes indústrias. A Academia permite avançar a IA para que se torne apta a ser utilizada em contexto industrial. Exemplo que Hélio Jesus aponta é a parceria com a Microsoft para o lançamento do Siemens Industrial Copilot, um assistente de IA generativa para “melhorar a colaboração entre o homem e as máquinas, com o potencial de revolucionar o processo de desenvolvimento, fabrico e a forma de operar das empresas”.

A Schaeffler está a usar esta solução para gerar códigos para máquinas, bem como para tarefas operacionais, como a manutenção e as reparações. A Siemens diz que mais de 100 empresas na Europa e Estados Unidos utilizam o Industrial Copilot na otimização da programação das máquinas e na resolução de problemas complexos.

A “fome de dados” para treinar os modelos LLM

Um dos pontos destacados no relatório, sobre os desafios que necessitam ser superados é a quantidade de dados necessários para treinar os modelos. Hélio Jesus diz que a revolução industrial que está em curso só é possível graças à análise dos dados que estão disponíveis. “É esta análise que tem permitido alcançar ganhos de eficiência e de flexibilidade em fábricas e infraestruturas de todo o mundo e acelerar os processos de tomada de decisão”.

Cita ainda que os relatórios apontam para o uso de apenas 20% dos dados disponíveis. “E é aqui que entra a IA industrial. Se combinarmos os dados das nossas infraestruturas industriais com IA, esta vai atuar como o verdadeiro catalisador para a digitalização da indústria”. Os dados e a respetiva estruturação, são considerados um fator-chave para o sucesso da integração da IA generativa na indústria.

A IA industrial pode ajudar a gerir e otimizar os sistemas críticos de diferentes indústrias. Mas para isso, é realmente necessária uma quantidade significativa de dados, que têm de ser confiáveis, robustos e seguros.

Para dar confiança aos players do ecossistema de IA, perante essa “fome de dados”, Hélio Jesus diz que é necessário apostar em três fontes: transparência e governança dos dados, parcerias estratégicas e a adoção de tecnologias inovadoras. Mas para isso, aponta ser necessário estabelecer protocolos rigorosos de segurança, conformidade e privacidade. Tecnologias como o Blockchain podem ser usadas para rastrear a origem dos dados e assegurar transações confiáveis e aditáveis. É preciso também promover a partilha ética e superar barreiras de confiança. Os mecanismos de validação e limpeza, certificações industriais e políticas robustas de privacidade são outros elementos que asseguram a integridade dos dados, criam ambiente seguro e transparente na troca de dados.

O relatório indica que nesta era da IA, aqueles que partilharem os dados com parceiros, clientes e especialistas vão ser melhor-sucedidos. A Siemens Xcelerator é uma plataforma de negócios digital aberta, contando com uma rede de parceiros para combinar conhecimentos e dados, num ambiente que assegura os critérios de segurança e confiança.

Questionado sobre as tecnologias que se vão destacar até 2030, Hélio Jesus aponta a computação quântica que vai revolucionar a área de computação como a conhecemos atualmente. “Vão destacar-se as empresas que estão atualmente a fazer avanços tecnológicos na computação destes modelos matemáticos”.

Quanto ao software, destacam-se aquelas que souberem integrar e aplicar com sucesso as tecnologias e os modelos de linguagem que o relatório refere nos diferentes contextos e sectores onde operam. Com a compra da Altair, a Siemens diz que está nesse caminho, uma empresa líder em software nas áreas da simulação e IA industrial, para expandir e reforçar o portefólio.

Sobre as principais dificuldades das empresas em adaptar-se a esta era da IA, destaca a resistência à mudança, investimentos e custos considerados elevados. A complexidade técnica das soluções propostas, assim como alguma inadequação das competências das pessoas e escassez de recursos humanos qualificados. A falta de dados disponíveis para análise, tempos logos de implementação dos projetos e escalabilidade das soluções, são outros pontos referidos.

A Siemens considera que o upskiling e o reskiling são fundamentais para responder aos desafios atuais e futuros. É importante requalificar e reorientar as pessoas, adaptando-as a novas realidades e assegurando que se mantêm relevantes.

A colaboração e união de esforços é essencial para dar resposta a esses desafios e o programa Xcelerator da Siemens, lançado em 2022, pretende ajudar nesse desenvolvimento. Esta plataforma de negócios aberta e digital, permite às empresas de qualquer dimensão e áreas de atividade acelerarem a sua transformação digital. Atualmente conta com cinco parceiros nacionais.

O LLM Industrial Foundation da Siemens pretende ser exatamente especializado na indústria. “Com décadas de experiência nas indústrias discretas e de processo, com o conhecimento que temos sobre os vários domínios, e com as nossas próprias fábricas, há muito que trabalhamos para melhorar as capacidades da IA para o design de produtos e da produção, para as operações fabris e para os serviços”. A empresa tem o compromisso de tornar esta IA industrial acessível, sem a necessidade de conhecimentos especializados, para facilitar a transformação digital. O modelo pode ajudar a aumentar a produtividade na área de engenharia para dar resposta à escassez de mão-de-obra especializada.

A principal diferença deste modelo para os conhecidos, como o ChatGPT, é que em vez de recorrer a dados generalistas da internet, estes modelos são treinados com dados específicos e de contexto, e aprendem normas técnicas, desenhos técnicos, protocolos de produção e documentação especializada, como explica Hélio Jesus. Além de capacitar a IA com uma compreensão mais profunda e específica sobre conceitos científicos e técnicos, apoiar engenheiros, operadores e gestores nas tomadas de decisões mais rápidas e seguras, permitem uma implementação mais rápida de soluções de IA, acrescenta.

A importância dos agentes de IA a nível industrial

“Os agentes de inteligência artificial já são essenciais e já estão a ser utilizados pelas empresas”, aponta Hélio Jesus. Explica que um agente de IA não é mais do que um sistema que utiliza inteligência artificial e que tem autonomia (agência, daí a terminologia Agentic IA) para tomar decisões, o que permite a automação de determinados processos. E dá como exemplos o sistema de armazenamento de energia e gestão de microrredes que a Siemens implementou a pedido da Empresa de Eletricidade dos Açores, na Ilha Terceira. Também no parque industrial da Lempäälän Energia, na Finlândia.

Refere que apesar de recorrer a portfólios tecnológicos diferentes, ambos incluem recurso a redes neuronais, softwares de gestão e controlo de microrredes desenvolvidos pela Siemens. Estes permitem monitorizar em tempo real os sistemas elétricos, fazer estimativas mais aproximadas da produção e consumo de energia para vários dias e horas, com base, por exemplo, em previsões meteorológicas e dados históricos.

O sistema da Ilha Terceira permite maximizar a integração de energias renováveis, mantendo níveis elevados de qualidade, fiabilidade e continuidade no abastecimento elétrico da ilha. O sistema da Finlândia garante condições de autossuficiência e otimização dos custos operacionais da geração e consumo de energia, o sistema permite ainda vender a energia excedente ou comprar.

Outro agente de IA que a Siemens emprega chama-se Decarbonization Business Optimizer, uma ferramenta digital criada pela empresa para simplificar o processo de descarbonização de instalações.

Sobre a questão da IA poder substituir exatamente essa falta de mão-de-obra qualificada e criar-se um círculo vicioso em que os humanos não se qualificam porque as máquinas estão no seu lugar, Hélio Jesus afirma que é inegável que o mercado de trabalho e a forma como as empresas operam sofrerem alterações com a tecnologia. Mas aponta que a IA já está a tornar as pessoas significativamente mais produtivas. “Pessoas estas que têm um espírito crítico e criativo muito relevante quando utilizam ferramentas de inteligência artificial”.

Aponta ainda o habitual “cliché” referente à integração da IA, em que “vai assegurar tarefas mais repetitivas e mundanas, permitindo às pessoas manter-se focadas naquilo que fazem melhor e onde podem fazer a diferença”. Ainda assim, considera que as relações sociais se tornam cada vez mais relevantes e “isso nenhuma máquina tem a capacidade de substituir”. Considera que a IA deve ser usada para capacitar as pessoas, aumentar a sua eficiência, produtividade, tal como aconteceu na primeira revolução industrial.

A tecnologia, no entender de Hélio Jesus, é vista com potencial para “apoiar uma demografia cada vez mais envelhecida, aumentar a produtividade organizacional e acelerar a velocidade da transformação digital”.