No âmbito do Especial que o SAPO TEK tem vindo a publicar sobre a saída de talento qualificado do país em áreas ligadas à tecnologia, procurámos perceber que impacto tem este movimento na ciência e entre investigadores. A Fundação para a Ciência e Tecnologia não tem dados atuais sobre o tema, nem o Conselho de Laboratórios Associados, que representa cerca de 10 mil investigadores, como confirmou João Rocha, coordenador da comissão executiva. O professor catedrático de Química na Universidade de Aveiro, que durante quase 20 anos dirigiu o Instituto de Materiais de Aveiro, o CICECO, aceitou no entanto partilhar um ponto de vista pessoal sobre o tema.

Numa primeira nota lembrou que “é crucial num país como Portugal, pequeno, as pessoas quando fazem os seus doutoramentos terem experiências fora do país, do ponto de vista da cultura científica”. Este tipo de movimentos fazem parte da formação e currículo dos investigadores e como tal quaisquer dados sobre o tema devem ser lidos com esse ponto em consideração. Também é facto que é materialmente impossível que todas as pessoas que fazem um doutoramento fiquem na academia, ou mesmo num laboratório. Isso acabou por ser agravado pelo facto de “durante muitos anos não terem sido abertos lugares para professores... durante mais de uma década seguramente”, frisa.

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Enquanto isso, foi-se vivendo de contratos temporários. O país manteve-se durante anos sem um estatuto para a carreira de investigador, que está agora a ser preparado, e isso fez com que, mesmo para investigadores muito bons, não existissem lugares permanentes. “Só mais recentemente surgiram alguns mecanismos que têm ajudado a corrigir a situação, que mesmo assim ainda não está totalmente resolvida”, como também destaca João Rocha. “A questão das carreiras científicas tem sido a mais relevante para levar investigadores de primeira água a sair”, admite o professor, que ainda assim não vê um “brain drain” em Portugal.

“Não tenho evidência de um número muito grande de pessoas muito boas que saiam do país por causa das condições”.

David Cairns, investigador principal no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, tem trabalhado o tema da mobilidade e é da mesma opinião. “Sempre houve pessoas que se deslocaram de Portugal para o estrangeiro para trabalhar e estudar, sobretudo nos primeiros anos de carreira. Isto deve-se a muitas razões, incluindo o maior prestígio de certas universidades noutros países”.

Na sua opinião, “isto não significa um “brain drain”, porque as pessoas tendem a regressar, especialmente quando planeiam constituir família. Também não tem motivação financeira. As estadias no estrangeiro custam dinheiro e não geram lucro”. Se os níveis de pessoas que se deslocam estiverem agora mais elevados do que o habitual, o investigador admite que isso possa ainda refletir as limitações da pandemia, que adiaram saídas.

David Cairns, que neste momento coordena precisamente uma investigação sobre a Circulação na Ciência: Mobilidade, Precariedade e Crescimento Económico, garante que no “domínio da ciência, as preocupações dentro de vários unidades de investigação prendem-se [hoje] mais com os fluxos de entrada do que com os de saída”. Um reflexo da dificuldade crónica do país para atrair talento qualificado, que tem vários motivos. A “necessidade de equivalência de qualificações e de certificados de língua portuguesa [para estrangeiros], o elevado custo de vida e a imagem do país como destino turístico”, serão alguns dos principais.

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Sobre os que saem, João Rocha lembra que é preciso acrescentar mais uma dimensão ao tema. Para além do Estado aplicar à I&D uma percentagem muito baixa do PIB, que se reflete nos recursos humanos e nas infraestruturas, onde tem havido um desinvestimento ao longo dos anos que também tem impacto na atratividade do sector, “há um problema de enquadramento das pessoas que se formam fora das universidades ou dos laboratórios dedicados”.

Historicamente as empresas investem pouco em I&D em Portugal. Nos últimos anos, o indicador melhorou e está hoje acima dos valores aportados à academia, mas é pouco claro o que na prática significam estes números - obtidos através de inquéritos às empresas. Para João Rocha estão “claramente inflacionados” e ainda assim são baixos.

Os dados oficiais de 2023 referem que Portugal gastou 4,5 mil milhões de euros em I&D, mais 10% que no ano anterior e correspondente a 1,7% do PIB. As empresas serão responsáveis por mais de 60% deste valor e o objetivo é que até 2030 a despesa total em I&D represente 3% do PIB, para convergir com a Europa.

Exceções à regra ou uma realidade mais diversa?

Iolanda Leite e José David Lopes já ajudaram a alimentar esta estatística. André Cruz, ainda enquanto estudante, provavelmente também, mas os três seguiram outros rumos. Só um já voltou a Portugal. Continua a fazer I&D, mas mudou para uma empresa que não é portuguesa
e com isso passou a fazer parte de outra estatística. Dizem os dados oficiais que não é só o número de portugueses que saem do país que está a aumentar, também têm aumentado os regressos.

José David Lopes
José David Lopes José David Lopes, NLP Data Scientist na Semasio

Em 2021, por exemplo, regressaram 19.615 e em 2022 mais de 21 mil. A diferença entre os dois anos não é assim tão expressiva, mas são números que representam mais do dobro e até do triplo dos valores apurados ao longo da década anterior. “Saem em média de Portugal na última década, por ano, cerca de 60 mil pessoas e regressam 20 mil. Curiosamente dois terços dos que regressam têm menos de 40 anos”, sublinha Rui Pena Pires, coordenador científico do Observatório da Emigração.

José David Lopes passou oito anos fora de Portugal. Depois de fazer o doutoramento teve convites para trabalhar fora na sua área de investigação - sistemas conversacionais - e aceitou.

“Quando acabei o doutoramento não senti que havia muitas portas abertas em Portugal para continuar a fazer investigação. As condições pós-doutoramento não eram muito atrativas. Como não tinha nada que me prendesse cá, senti que devia agarrar a oportunidade”.

Esteve alguns meses em Bilbao, e repartiu o resto do tempo pela Suécia e Escócia. A pandemia antecipou o regresso ao país e a vida familiar fê-lo decidir não ia voltar a sair. A primeira opção foi continuar a fazer I&D no sistema científico e fez algumas tentativas, sem sucesso e que não se prolongaram muito no tempo. “Há pouco mecenato científico em Portugal e o pouco financiamento público que existe mantém-se quase sempre nos mesmos circuitos”. Surgiu a oportunidade de continuar a fazer I&D numa empresa e aceitou. Hoje é NLP Data Scientist na Semasio, que tem origem alemã mas passou há alguns meses a integrar um grupo americano. O escritório é no Porto, mas como o modelo de trabalho é híbrido José Lopes passa maior parte da semana a trabalhar desde Coimbra, onde vive.

Ir para uma empresa libertou-me de alguma pressão”, confessa. A precariedade da carreira de investigador gera “muita competitividade para disputar as mesmas oportunidades” e obriga a estar “permanentemente atrás do financiamento de projetos. Nas empresas também há quem se preocupe com isso, mas os engenheiros e cientistas de dados não”.

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Ali faz investigação aplicada, para melhorias no produto da empresa, uma solução que analisa o conteúdo semântico de páginas web, para poder fazer publicidade mais dirigida. “Nós andamos à caça de coisas que possam vir a ser úteis ao produto daqui a seis meses ou um ano”, explica. “É um trabalho que tem uma maior componente de recompensa a curto prazo”. Isso não significa que o engenheiro eletrónico formado em Coimbra e doutorado no IST não tenha algumas saudades do ambiente do trabalho em investigação fundamental, mais a longo prazo, mas reconhece os ganhos.

Iolanda Leite está em Estocolmo desde 2017. Não tem planos para regressar a Portugal tão cedo, mas admite que se voltasse talvez optasse por fazer I&D também numa empresa. Não vê mudanças significativas nas condições para uma carreira de investigadora em Portugal desde que saiu em 2013 também do Técnico, onde fez o doutoramento, para um Post Doc na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

Ficou no país até 2016, onde teve a hipótese de fazer ainda um estágio na Disney Research. “Quando chegou a altura de pensar numa posição permanente, porque não podemos andar com bolsas ou com estas posições temporárias para sempre, surgiu a oportunidade no KTH”, conta. “Era uma posição muito boa e como em Portugal não havia nenhuma oportunidade semelhante acabei por ficar”.

Iolanda Leite - investigador KTH Suécia
Iolanda Leite - investigador KTH Suécia Iolanda Leite - investigadora e docente no KTH em Estocolmo, na Suécia

No Royal Institute of Technology em Estocolmo lidera um grupo de investigação com cerca de 10 pessoas e dá aulas de inteligência artificial e robótica social. Os projetos de investigação em que está envolvida também são nestas áreas, com especial destaque para a interação com humanos. “Trabalhamos muito na otimização dos mecanismos de Human in the Loop Learning - como é que os sistemas, chatbots ou robots, conseguem aprender com humanos. Não só através de dados, mas também mais iterativamente, de forma a que a pessoa consiga corrigir quando o robot está a fazer alguma coisa de errado”. Um dos objetivos é tornar os algoritmos mais eficientes. “Neste momento ainda são necessários muitos dados de humanos artificiais para correção e o que tentamos fazer é encontrar métodos que tornem mais eficiente este Human in the Loop Learning”, detalha.

Iolanda Leite também fez I&D em Portugal e o que destaca na comparação, a favor da Suécia, é que “em termos de financiamento e condições” são bastante melhores ali, ainda desde a formação. “Os alunos de doutoramento têm mesmo um contrato de trabalho. São empregados na universidade e têm assegurados um conjunto de direitos, como uma licença de maternidade ou paternidade”. Em Portugal os bolseiros têm uma situação mais precária.

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Na sua posição em concreto, sublinha o facto de ter “muito mais tempo para fazer investigação. Em Portugal quase que as pessoas fazem investigação em part-time, porque dão muitas aulas. Aqui há mais pessoas, logo é mais fácil distribuir essas tarefas”. Nota ainda que a escala do financiamento à ciência é completamente diferente e muito menos dependente de fundos europeus. “Neste momento não tenho quase nenhum financiamento europeu. O financiamento é nacional e há muitas fundações privadas”, que fazem mecenato.

Saí de Portugal na altura em que, acho que era um ministro, dizia para as pessoas emigrarem”, brinca a investigadora, que mais a sério recorda que não identificou muitas outras opções para quem terminava o doutoramento e queria dedicar-se essencialmente à I&D. “Na altura em que fiz o doutoramento, Portugal produzia doutorados mas depois não havia progressão de carreira, não havia saída para toda essa gente, por isso acho que é quase esperado que alguns vão para fora”. As empresas também eram uma opção pouco viável.

“Aqui há muita contratação de doutorados por empresas. Em Portugal quase não há vantagem em ter feito cinco ou seis anos de investigação, comparado com uma pessoa que saiu do mestrado e entrou logo na indústria”.

O mais difícil de viver na Suécia, com o marido, investigador e também português, e os dois filhos é, claro, as saudades da família e o tempo, confessa Iolanda Leite: “no inverso, às 15h já é de noite”. Mas a realização profissional e a organização da cultura pesam a favor da Suécia na altura de fazer planos para o futuro. “As coisas funcionam, há eficiência, chega-se a horas e para quem tem crianças então as condições são muito apelativas”.

Doutoramentos fora são uma janela para um mundo apelativo

André Cruz, ex-aluno da FEUP, está no início do caminho. Estudou na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Lá fez o mestrado, com direito a um prémio da APDC para a tese que preparou na Feedzai. Quer fazer carreira como investigador e já tinha planos para dar o próximo passo fora de Portugal. Escolheu (e foi escolhido) para fazer o doutoramento em Tübingen num dos mais de 80 institutos e centros de I&D da Max Planck Society, reputado na investigação sobre Interação entre inteligência artificial e sociedade, que é a sua área.

André Cruz, a fazer doutoramento no Max Planck Institute for Intelligent Systems
André Cruz, a fazer doutoramento no Max Planck Institute for Intelligent Systems André Cruz, a fazer doutoramento no Max Planck Institute for Intelligent Systems na Alemanha créditos: André Cruz

Ali integra um projeto que investiga o poder de influência dos algoritmos. Serão os algoritmos tão eficientes a aprender com os humanos que recomendam sempre a melhor série ou livro para cada interlocutor, ou somos nós que não precisamos de uma sugestão assim tão certeira para seguir uma recomendação? As primeiras evidências sugerem a segunda hipótese.

A relação custo /benefício determinou a saída de Portugal. “Fazer o doutoramento em Portugal ia ser um grande sacrifício financeiro”, admite. Ia optar por Lisboa, onde os preços das casas estão proibitivos. Na Alemanha tem um contrato-emprego, um modelo semelhante ao que Iolanda Leite descreveu para a Suécia, pelo qual recebe 2.500 euros (líquidos) mensais. Na prática conta com o dobro do rendimento que teria em Portugal (através de uma bolsa) para um custo de vida que, no máximo, está 20% acima do que teria em Portugal.

Ainda tem dois anos até ao fim do doutoramento, mas a experiência até à data confirmou o que já pensava. O futuro próximo não passa por Portugal. André Cruz continua fascinado com a “a densidade da investigação” que encontrou. “Só no edifício onde estou temos centenas de investigadores a trabalhar em inteligência artificial e maior densidade é um ponto de partida para melhores ideias, mais colaborações”, frisa.

O nível de internacionalização do instituto é outro ponto claro de entusiasmo com a experiência. “Há intercâmbio com investigadores de todo o mundo. É um movimento que às vezes parece que não importa, mas acaba por ser muito relevante porque potencia muitas colaborações”.

Em Portugal, “temos bons professores em muitas universidades, mas como não há investimento [em infraestruturas] as condições para fazer investigação acabam por não ser as melhores”, lamenta. “Aqui temos acesso fácil a clusters e a muita capacidade de computação, crítica para trabalhar com grandes modelos de linguagem. Trabalhando o mesmo chegamos mais longe”.

É num ambiente assim que o jovem português ambiciona seguir com a carreira. Pode ser numa empresa ou na academia mas, principalmente pela questão material (das infraestruturas), a segunda hipótese dificilmente passará por Portugal. É pelo menos esse o plano. Se se concretizar, e se no futuro vier a existir uma estatística sobre os investigadores que não chegaram a começar uma carreira em Portugal, André há-de fazer parte dela.

Este artigo integra o Especial "À procura de uma vida "melhor"… porque sai cada vez mais talento qualificado de Portugal e o que encontra no destino?" com vários textos que pode ler no SAPO TEK ao longo dos próximos dias.