Não é novidade para ninguém: quase todos os anúncios com que nos cruzamos online, são desenhados especificamente para pessoas com um perfil igual ou, pelo menos, semelhante ao nosso. É o poder dos dados que deixa os anunciantes perceberem com quem estão a falar, como se sente a sua audiência, onde esteve e outras informações que tais. No entanto, pouco se sabe sobre a forma como funcionam estes reclames que vemos na internet. É um processo complexo, popular pelos seus resultados, mas que atua de forma invisível nos "bastidores" do universo digital.

Para levantar o véu, o New York Times (NYT) decidiu esmiuçar um dos processos base da economia que sustenta a maior parte dos sites que visitamos diariamente. Para isso, o jornal decidiu comprar espaços para anunciar online e selecionou 16 categorias de pessoas para segmentar a sua audiência. Este grupo foi selecionado com base em critérios como "intenções de perder peso" e "afiliação política". No entanto, em vez de tentar vender subscrições para o jornal, o NYT quis mostrar a informação invisível que liga determinado anúncio a determinada pessoa. Aqui fica um dos anúncios:

A experiência tentou mostrar não só que as empresas estão na posse de informações muito pessoais dos utilizadores, mas também que estas as manipulam para atingir fins comerciais e políticos. "A forma como os anúncios são segmentados, hoje, é muito diferente da forma como eram segmentados há 10 ou 15 anos. O processo tornou-se exponencialmente mais invasivo, e a maioria das pessoas não faz ideia das informações que alimentam o processo", diz Frederike Kaltheuner, líder do programa de exploração do Privacy International.

Anteriormente, a segmentação cingia-se a um critério contextual simples. Se por acaso um utilizador visitasse o site de um canal desportivo, o mais provável era que acabasse por se cruzar com anúncios de marcas desportivas, competições deportivas e outras coisas relacionadas com desporto. Hoje em dia, as categorias existentes para a segmentação não são tão vagas. São estreitas e permitem a individualização do consumidor.

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Estes dados não são cedidos de forma direta pelos utilizadores. Apesar de estes consentirem com a transmissão de informações, são as empresas onde se registam que acabam por vender essas mesma informações a outras empresas. Assim, é possível criar perfis muito detalhados de cada utilizador, uma vez que estes cedem diferentes tipos de dados a cada plataforma e serviço, revelando diferentes partes da sua identidade e costumes à medida que alargam a sua pegada digital. Por isto, Johnny Ryan, responsável pelas políticas de utilização do browser Brave, acredita que nas próximas eleições norte-americanas, "é inevitável que cada votante esteja perfilado com base naquilo que tem lido, assistido e ouvido online ao longo dos últimos anos.

Mas o conjunto de informações a que os anunciantes têm acesso, não se cinge àquilo que sabem clara e inequivocamente. Os fornecedores alegam que, com base nos dados, conseguem prever comportamentos e gostos. Isto significa que, mesmo sem ter o seu registo de voto, as empresas podem determinar em quem é que é mais provável que vote nas próximas eleições ou para onde é que vai de férias no próximo verão. Isto é possível através da comparação comportamental.

Ao comparar o padrão de utilização e navegação de um dado utilizador com vários grupos de dados, as fornecedoras de dados conseguem prever, por exemplo, se um utilizador vai mesmo comprar um carro. Para isso, basta entender como é que os utilizadores que compraram carros recentemente, se comportaram online. Ao identificar padrões e utilizadores que se começam a encaixar nos mesmos, é possível perceber onde reside o maior potencial de conversão comercial.

Isto faz com que o utilizador seja automaticamente colocado num lote de utilizadores a quem uma fabricante automóvel terá mais interesse em mostrar uma promoção para um novo modelo de carro, por exemplo. É importante, contudo, entender que as previsões não são factuais, mas sim apostas, que apesar de terem uma alta percentagem de sucesso, apresentam, ainda assim, alguma margem de erro.

A falta de privacidade que acarreta este modelo de negócio é problemático, mas quando as marcas não são as únicas entidades que podem vasculhar estas informações, o risco é ainda maior. Em 2017, por exemplo, um grupo de investigadores alemães conseguiu ligar um conjunto de dados, supostamente anónimo, aos indivíduos que os geraram. Os resultados desta experiência foram reveladores do potencial de risco inerente aos leaks de informações. Ao ligarem "dado" com "utilizador", os investigadores descobriram que tipo de medicação um político alemão estava a tomar e qual o tipo de pornografia preferido de um juiz.

Os anúncios segmentados são potencialmente melhores, tanto para as marcas, dada a eficiência potencial dos mesmos, como para o público, que assim se cruza com informação mais adequada às suas preferências e hábitos. No entanto, a recolha de dados que alimenta esta segmentação pode estar a processar-se num nível demasiado invasivo, que toca em dimensões muito pessoais dos utilizadores.

"Será que as empresas precisam mesmo de monitorizar todos os sites que as pessoas visitam, todas as apps que usam, em todas as plataformas, e manter esses dados durante longos períodos de tempo?", pergunta Kaltheuner. "Isto tudo apenas para mostrar anúncios relevantes?".

As empresas de anúncios registam toda a sua utilização da internet, através de sistemas de monitorização e cookies que mantêm um perfil atualizado das suas preferências. Depois, os dados são partilhados com os anunciantes, que leiloam os espaços de publicidade disponíveis online. As marcas que colocarem mais dinheiro "em cima da mesa" ganham o direito de publicitar no espaço a leilão.

Shoshana Zuboff, professora da Universidade de Harvard e autora do livro "The Age of Surveillance Capitalism", considera que esta exploração é semelhante à que as empresas fazem dos recursos naturais quando os transformam em bens comerciais. É uma forma de alimentar uma "economia de vigilância".

"Isto tudo é sobre publicidade, mas todas as implicações negativas que o sistema acarreta, não têm nada a ver com anúncios. E esse é o preço que pagamos, apenas para ver anúncios relevantes", rematou Kaltheuner.