Por Bruno Castro (*)

Enquanto indivíduos, estamos tendencialmente mais ligados à nossa cidade que ao nosso país. É na cidade que encontramos os jardins e pracetas nos intervalos de uma vida atarefada entre buzinadelas, prédios altos e monumentos históricos. Seja de trotinete ou bicicleta elétrica, carro partilhado ou transporte público, deslocamo-nos diariamente, numa azafama que se replica um pouco por toda a União Europeia.

Mesmo que inconscientemente, é ao município que mais exigimos, seja porque queremos um sistema de recolha de lixo mais eficiente, seja porque já não temos onde estacionar o carro. Exigimos que a cidade seja um prestador de serviços e sabemos que assim o é, há muitas gerações. Mas também sabemos que muitos desses serviços não mudam há séculos pois, cada mudança implica, normalmente, custos muito elevados que recaem sobre os contribuintes.

Foi a pensar nesta realidade que o conceito de Smart City começou a entrar na ordem do dia. O seu princípio é simples. Passa por gerar mudanças visíveis e com impacto na qualidade de vida do cidadão a baixo custo – criando cidades inteligentes. Além da eficácia, estão em causa as atuais e cada vez maiores preocupações com o ambiente e, claro, a intervenção política municipal. É assim que o conceito que temos hoje de cidade está a ser melhorado globalmente.

E porque é que a SmartCity parece ter sido apropriada pela União Europeia?

Ao contrário dos EUA, que podemos considerar uma comunidade de metrópoles, a Europa é uma comunidade de pequenas/médias cidades. Lisboa, por exemplo, mais não é do que uma cidade expandida, com cerca de 2 milhões de habitantes distribuídos por toda a área metropolitana. Este número, ligeiramente a baixo dos cerca de 3 milhões alemães (Berlim), é substancialmente inferior, quando comparado com as congéneres americanas – Nova Iorque tem cerca de 9 milhões - e sul americanas – São Paulo tem cerca de 15 milhões - ou asiáticas – Chongquing com cerca de 30 milhões de habitantes. A União Europeia, cujo tecido apresenta densidades populacionais bastante inferiores, acaba por funcionar como o projeto piloto ideal e em grande escala para por em prática o desafio, também ele político, das cidades inteligentes.

Naturalmente que, sendo um conceito funcional na Europa, não poderá deixar de ver em si mesmo representado o legado político da União Europeia. Referimo-nos, em particular, às preocupações ambientais que, reforçadas por acordos como o Acordo de Paris, são um tema muito querido para os cidadãos europeus, que já perceberam que não se pode continuar a crescer sem olhar a sustentabilidade. Desta forma, pensar em mobilidade inteligente é também pensar “verde”.

Acresce ainda que a Europa, ao contrário dos EUA, Rússia ou Ásia, tem muito mais vulnerabilidades e urge muito mais por Segurança – veja-se, por exemplo, o maior risco de ameaça terrorista, pelo que uma Smart City será, necessariamente, uma cidade capaz de se defender, mitigando fenómenos de insegurança, mas sempre com equilíbrio e respeito pelos princípios democráticos - direitos, liberdades e garantias, em particular, no que toca à sua privacidade.

É sobretudo neste último vetor que a VisionWare quis envolver-se nos projetos europeus que têm, nos últimos anos, contribuindo para a construção das Smart Cities na União Europeia. Para a VisionWare a Segurança é um valor fundamental, que deve ser assegurado a todo o custo, exceto, quando em colisão direta com os direitos dos cidadãos, nomeadamente, à privacidade, aspeto que tem também pautado o nosso trabalho junto dos nossos clientes.  Em todo o caso, é preciso entender que, sobretudo quando falamos em cidades inteligentes, não podemos pensar a segurança de uma perspetiva estritamente física: esta interliga-se com meios de segurança virtual, área de excelência da VisionWare, refletida nos já cinco projetos europeus em que participámos, três dos quais no âmbito do FP7 e do H2020, com enorme investimento por parte da Comissão Europeia.

Estes projetos foram respondendo e continuam a responder às preocupações e necessidades do cidadão europeu, fortalecendo o grande projeto que é a União Europeia.

Como referimos, uma preocupação recorrente, sobretudo de há uns anos para cá, na mente de qualquer cidadão europeu, é o terrorismo. Os sistemas de videovigilância da cidade – que já existem há muitos anos – permitem identificar, a posteriori, suspeitos de um crime. Contudo - como foi evidente nas Riots de Londres (2011), numa cidade com muitas câmaras - a informação torna-se difícil de analisar por meios humanos. No caso, três dias de distúrbios equivaleram a 18.000 horas de vídeo. Ora, com uma equipa de 24 analistas divididas por grupos de 8, trabalhando revezadamente em turnos de 8 horas ininterruptamente, seria apenas possível analisar 192 horas por dia. Mesmo que trabalhassem aos fins-de-semana, sem folgas, seriam precisos cerca de 3 meses para analisar aqueles 3 dias de distúrbios.

Foi a pensar nesta e noutras situações que surgiram os primeiros projetos em que participámos, orientados para a construção de Smart Cities, na vertente da segurança. A tecnologia pode ser uma grande ajuda. E se há coisa que os computadores fazem muito bem é identificar padrões através de modelos estatísticos e, daí, retirar, isolar e reconhecer desvios. Assim, no projeto LASIE, através do recurso a um software de análise de Big Data – análise de padrões, reconhecimento facial e reconstrução de cenas de crime – foi possível colmatar uma lacuna tremenda que, em cenários futuros, teria desfechos bem distintos dos decorridos em Londres.

Mas aquela solução era, apesar de tudo, incompleta. Foi com o FORENSOR que se procurou colocar a inteligência de deteção de padrões diretamente nos sensores, tornando-os capazes de enviar alerta no momento da ocorrência e agir preventivamente – apresentando o conceito de on the edge computing. A sua relevância prática é tremenda. Por exemplo, teria permitido identificar pessoas armadas em tempo real ou ainda detetar volumes suspeitos abandonados em transportes públicos, emitir um alerta e, consequentemente, ganhar tempo para evacuar civis – num caso como o do Charlie Hebdo ou do atentado no metro de Bruxelas.

O mesmo sistema que deteta carros bomba, pode melhorar o dia-a-dia da cidade, e servir não apenas as autoridades na prossecução das ameaças, mas, também, os próprios cidadãos. Falamos de tanto identificar carros parados em 2ª fila como pontes ou estradas em risco, através de monitorização constante - evitandos casos como o de Borba ou da ponte Morandi (Génova, Itália).  E é assim que chegamos ao projeto em que estamos a participar desde finais de 2018 (SCENE).

Olhando para o futuro, sabemos que as tecnologias de Hiperconetividade a baixo custo (5G/6G) vão permitir ter sensores conectados e inteligentes em maior número e cada vez mais capazes.  De mão dada com o conceito de Internet of Things, vamos ter sensores, no caixote do lixo, no banco do jardim, na lâmpada do candeeiro, na rega, nos estacionamentos, perto de moradias ou de zonas com elevado risco de incêndio. Será possível otimizar os serviços e detetar atempadamente perigos e crimes. É, no entanto, importante compreender que a proliferação de sensores com inteligência a baixo custo que criam uma verdadeira rede sensorial, coloca um conjunto de desafios, de outra ordem. O desenvolvimento deste tipo de tecnologias de vigilância na Europa tem sempre de ser feito sob a égide do RGPD (entre outros), o que implica, a cada momento, fazer uma análise do custo benefício, isto é, verificar se o risco justifica a restrição da privacidade própria da vigilância. É por isto que, a título exemplificativo, imagens captadas por sensores só podem ser aquelas que consubstanciem situações anómalas.

Mas o futuro pode ser, também ele, assustador. As cidades inteligentes têm, por princípio, um enorme potencial de abuso: o mesmo sensor que deteta assaltos pode detetar quando os moradores vão de férias; o que monitoriza carros, permite saber quais estão parados à mais tempo e são mais suscetíveis de assalto; os que monitorizam o sistemas de distribuição de águas públicas podem ser também controlados de forma a criar uma quebra de serviços; e por ai adiante. Estas são ameaças particularmente perigosas e difíceis de detetar, não necessariamente novas, mas profundamente sofisticadas e que obrigarão, na construção das cidades inteligentes, a uma enorme reflexão sobre segurança e privacidade, enfim, a uma reflexão inteligente sobre o futuro.

(*)  CEO da VisionWare